Opinião

Sensações extremistas

Cinco dirigentes da SOS Racismo referem-se neste artigo ao discurso de Pedro Passos Coelho num comício da AD: “É por tudo isto que ainda é necessário dizer o óbvio: não, não existe nenhuma relação entre criminalidade e imigração, a não ser aquela que vitima as pessoas imigrantes. E não, não se aceitam discursos de ódio, nem se desiste de defender a liberdade e a igualdade para todas as pessoas que residem em Portugal”

Nuno André Silva, Joana Cabral, Joana Santos, José Falcão e Mamadou Ba, dirigentes da SOS Racismo

Nos dias que correm, afirmar o óbvio é um imperativo ético e democrático. E perante a assertividade da extrema-direita, o óbvio e imperativo é repetir que a imigração não implica criminalidade ou insegurança.

Esta conclusão baseia-se em factos e números. No estudo de 2023 do Institute for Economics and Peace, Portugal encontra-se no 7.º lugar entre os países mais seguros do mundo e no 5.º lugar dos países europeus. A mesma conclusão pode ser retirada dos relatórios anuais de segurança interna, que têm continuamente demonstrado baixos índices de criminalidade no país: em 2022, os registos de crimes violentos representaram o 3.º número mais baixo desde 2014. Os dados do Observatório das Migrações são também inequívocos: de 2014 a 2022, enquanto o número de estrangeiros residentes em Portugal aumentou substancialmente, o número de crimes participados em 2022 foi inferior ao de 2014. Não existem quaisquer factos que permitam concluir por uma correspondência entre crime e imigração.

Se quisermos olhar para a imigração de um ponto de vista meramente utilitarista, também conseguimos reunir elementos que nos comprovam que o fenómeno não constitui nenhuma ameaça, mas é, sim, favorável para a economia e para o equilíbrio demográfico do país. Segundo o Observatório das Migrações, os estrangeiros residentes no país foram responsáveis por uma contribuição líquida positiva para a Segurança Social, de 968 milhões de euros em 2021 e 1.604,2 milhões em 2022.

No entanto, o utilitarismo não deve esgotar a discussão sobre a papel da imigração para a construção de uma sociedade assente na justiça social e na plena cidadania. Acima de tudo, o que devemos sublinhar é que a imigração corresponde à concretização de projetos de vida e responde às necessidades de justiça e proteção face às ameaças da desigualdade, crise climática e da guerra, entre outras. Esta é a visão humanista determinante para defender em democracia. E quando as políticas públicas se preocupam cada vez mais com a inclusão social, o diálogo intercultural e com o combate à discriminação, a imigração torna qualquer sociedade mais rica e mais plural, um espaço de liberdade e de respeito pelo outro.

A coligação AD presenteou-nos nos últimos dias com uma nova estratégia narrativa: os factos não serão relevantes, o que impera na fundamentação de políticas são “sensações”. Nesta premissa, seriam as “sensações” de insegurança face à presença de imigrantes, a justificar restrições à imigração e aos direitos das pessoas imigrantes. 

Não se explicou, contudo, o que fundamenta tais “sensações”, mas foi na insegurança que a mensagem se centrou. Ora, a propósito da insegurança, são vários os casos que têm criado agitação na sociedade portuguesa: a corrupção em vários setores políticos e da economia; os crimes económicos, que criaram várias ondas de choque e de instabilidade financeira nas últimas décadas e que determinaram a intervenção pública para resgatar o setor bancário; a criminalidade violenta, que acompanha o mundo do futebol e suas claques; os crimes hediondos revelados no processo Casa Pia e no seio da Igreja Católica, com centenas de vítimas de crimes sexuais graves, na sua maioria menores de idade. Porém, em nenhum destes casos encontramos referências a imigrantes - nem sequer a portugueses ciganos, para incluir outra das “sensações” que por aí pululam. Aplicando o princípio da sensação não se encontra aqui qualquer relação entre crime e imigração. Antes as sensações detetam protagonistas e problemas, infelizmente, demasiado caseiros e nacionais. 

Esta apregoada “sensação” de falta de segurança face à imigração é apenas mais uma como tantas outras: há quem tenha a “sensação” que a terra é plana, que a covid-19 foi uma conspiração ou que não atravessamos um período de preocupantes alterações climáticas. A liberdade de pensar é ilimitada, mas, sem factos que lhe sirvam de alicerce, estes são estados de espírito que se circunscrevem a um mundo de fantasia onde se abrigam os sempre renováveis imaginários da xenofobia.

Diga-se, aliás, que a relação entre criminalidade e imigração que pode e deve ser feita, é contrária à elencada pela AD – as pessoas imigrantes têm sido alvo de discriminação e violência em Portugal. Voltemos os dados: o último relatório produzido pela Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial aponta para um aumento de 20,3% de queixas por discriminação racial em 2022; sendo que, em 51.7% dessas queixas, o motivo para a discriminação foi a nacionalidade das vítimas. Para além disso, os anos mais recentes foram preenchidos por vários casos de violência extrema contra imigrantes. Em 2020, Ihor Homeniuk, ucraniano, morreu na sequência de bárbaras agressões de funcionários do SEF no aeroporto de Lisboa. Em 2023, os casos multiplicaram-se: Gurpreet Singh, indiano, foi morto a tiro em sua casa, em Setúbal, tendo a investigação encontrado motivações xenófobas para o crime; um grupo de jovens em Olhão agrediu, de forma planeada e concertada, imigrantes indianos e nepaleses; guardas da GNR foram condenados pelo Tribunal de Beja por ofensas à integridade física qualificada e sequestro agravado de imigrantes em Odemira; a PJ identificou 100 imigrantes vitimas de exploração em propriedade agrícolas no Alentejo;  um incêndio num prédio em Lisboa provocou dois mortos de nacionalidade indiana, revelando condições de habitação desumanas. O rol é extenso.

Perante isto, não se pode admitir que alguém com responsabilidades políticas invoque “sensações” para veicular discursos xenófobos, e alimentar ódio e violência. Não se pode admitir que se tire proveito da frágil posição de pessoas migrantes, que não votam nestas eleições e que vivem muitas vezes em condições laborais, sociais e económicas altamente precárias. Não se pode admitir que se desinvista em políticas inclusivas e de combate à discriminação, que se deixe de promover a informação e a educação e que se abandone a defesa dos direitos humanos e da democracia. Não se admite, sobretudo, que se ofendam gratuitamente os direitos à dignidade e segurança das pessoas migrantes para cavalgar eleitoralmente o medo e ignorância.

Este assombro promovido pela AD pode ter duas origens. Tratar-se de mero taticismo, gizado pelas equipas de campanha eleitoral para esvaziar o discurso da extrema-direita, o que não constitui novidade. Foi o caminho percorrido noutros países, e que nunca correu bem, por ter legitimado discursos de ódio e patrocinado os temas da extrema-direita no debate político. A segunda hipótese seria a da expressão de uma convicção ideológica, que não convive com a diferença e que só entende a imigração como fator de desestabilização social. Também aqui não há nada de novo a registar. O discurso de ódio de Ventura não nasce no Chega; começou e foi apoiado no PSD, numa candidatura às eleições autárquicas. 

É por tudo isto que ainda é necessário dizer o óbvio: não, não existe nenhuma relação entre criminalidade e imigração, a não ser aquela que vitima as pessoas imigrantes. E não, não se aceitam discursos de ódio, nem se desiste de defender a liberdade e a igualdade para todas as pessoas que residem em Portugal. Este é um dever de cidadania e da mais elementar decência.