Opinião

O Estado deve acudir à comunicação social e esta deve acudir à democracia

Os meios de comunicação tradicional fazem de nós um povo. As redes ditas sociais fazem de nós uma turba. O problema é quando os primeiros mimetizam os idiomas e os códigos das segundas para prenderem a nossa atenção

Um dos melhores jornalistas que este país conheceu, Manuel António Pina, falava-nos, em 2003, de “tempos em que, como num pesadelo climatizado, assistimos à completa tabloidização da vida colectiva". Vinte anos depois, constatamos, de coração pesado, a agonia do Jornal de Notícias, que foi o fórum de todos os protagonistas da vida pública a Norte, o jornal de Pina, de Germano Silva, de José Saraiva e de muitos outros, epicentro de uma irmandade tão comprometida com a pólis como com a tertúlia. O caso da Global Media choca pela desumanidade com que se deixam trabalhadores entregues a si mesmos, sem salários, sem recursos, sem esperança, em nome não se sabe bem de que desígnio esconso ou por obra de que execrável incompetência. A provação dos trabalhadores dos vários órgãos de imprensa e rádio afetados dá corda à nossa indignação.

Por estes dias, muitos têm reafirmado o óbvio: que uma comunicação social livre e pujante é imprescindível à sobrevivência das democracias representativas. Se o poder político se autolimita constitucionalmente, é a comunicação social que o conjura no espaço público e o expõe ao juízo da cidadania. Mas ela não se fica por aí. A comunicação social condiciona condutas, influencia decisões, desencadeia demissões... Como, há dois séculos, intuiu Tocqueville, ela não se limita a formar a opinião pública mas “modifica as leis e os costumes” (A democracia na América). É um poder desmesurado. Ciente dessa desmesura, Peter Sloterdijk teve o desassombro de escrever que “o ponto cego de todas as Constituições são os media na sua função de poderes indiretos” (Epidemias políticas). Quando é excessivo, o contrapoder indireto incapacita o poder sufragado.

A comunicação social é um bem público, como alguns têm afirmado, mas um bem público maioritariamente detido por privados. É um poder que, ao contrário dos poderes constituídos, não pode ser dissolvido. Mas é tão mortal quanto estes (e morre sempre que eles morrem). Hoje vemo-lo degradado e precarizado pela concentração da propriedade, minado pela pirataria, atropelado pelas redes digitais de propagação de factos alternativos e flutuações afetivas, sem mediação, sem contenção e sem responsabilização. O Estado deve, por isso, empenhar-se na sua conservação e na sua independência. Os meios de comunicação tradicional fazem de nós um povo. As redes ditas sociais fazem de nós uma turba. O problema é quando os primeiros mimetizam os idiomas e os códigos das segundas para prenderem a nossa atenção.

A crise da Global Media não nos deve fazer esquecer que a comunicação social, especialmente na sua modalidade televisiva, já não encarna somente o quarto poder que aclara as zonas sombrias dos poderes soberanos clássicos. Ela encontra-se em metamorfose acelerada e assemelha-se cada vez mais a um anti-poder que, praticando a hipérbole, a amplificação, a omissão, a suspeição, corrói a autoridade e a decisão políticas e tolda a capacidade de compreender e julgar. Como escreveu Pierre-Henri Tavoillot, num interessante tratado de teoria política (de 2019, não traduzido para português), "outrora, a censura era usada pelo Estado para restringir a liberdade de opinião, hoje, é a liberdade de opinião que restringe o Estado, ao instaurar um regime de permanente censura mediática".

Todos os canais televisivos reproduzem o mesmo e o mesmo serve para alimentar a emoção fácil ou o ressentimento epidérmico. A velha caixa mágica, janela aberta sobre o mundo, tornou-se uma caixa autofágica de neuroses mundanas. Veja-se como as televisões transformam um ajuntamento de meia dúzia numa manifestação; como concorrem para a campanha de descredibilização do SNS ou para difundir a vigarice do “empobrecimento” do país; para entreter o povo com o pão e o circo dos incêndios rurais non-stop; para pactuar com a abolição dos assuntos europeus nas eleições europeias. Veja-se como as televisões se prestam sofregamente a difundir cada impostura do televangelista André Ventura, cada bazófia da sua trupe de oportunistas, dando colo à sua “convenção”. Temos de nos resignar a esta tabloidização da nossa vida coletiva? Quando até o Público, esse reduto de inteligência e decência jornalística, exibe, na sua capa de 15 de Janeiro, “Preparem-se: o Chega já não é só gritos e jantares”, não podemos senão estremecer.

Como é de regra no nosso país, é para o Estado que se voltam agora muitos dos que se comprazem em pintá-lo como um monstro perverso, em busca de terapias para os órgãos de comunicação tradicionais. Nos últimos dias, não têm faltado propostas assisadas de intervencionismo público para os socorrer. E não há dúvida de que é vital assegurar a transparência da propriedade e impedir a sua concentração, como, em paralelo, fundar uma ecologia dos media que preserve as espécies ameaçadas, como a imprensa local e regional, sem a qual não há sociedade civil digna desse nome na maior parte do nosso território.

É verdade que não há democracia sem uma comunicação social livre. Mas não é menos verdade que uma parte da comunicação social tem ajudado a degradar a democracia. A democracia deve salvar a comunicação social. Não quererá esta ajudar a salvar a democracia?