Opinião

Um pouco de sobriedade

Precisamos de um jejum de espalhafato, de desmesura, de intemperança, de mediatismo espúrio, de assanhamento gratuito. Um pouco de sobriedade na luta política, com menos estridência, menos hubris, menos antagonismo artificioso, menos diabolização do adversário

Neste início de ano, faço votos de sobriedade nas nossas vidas. Um pouco de sobriedade na nossa existência pública e privada. Precisamos de um jejum de espalhafato, de desmesura, de intemperança, de mediatismo espúrio, de assanhamento gratuito. Um pouco de sobriedade na luta política, com menos estridência, menos hubris, menos antagonismo artificioso, menos diabolização do adversário. Um pouco de sobriedade informativa, na comunicação social, com menos amplificação do mau e menos desdém do bom, menos alarmismo e mais pedagogia. Um pouco de sobriedade na justiça, com menos voluntarismo leviano, menos ligeireza nas investigações, menos reputações aniquiladas infundadamente. Um pouco de sobriedade institucional, com menos pronúncias, menos ardis palacianos, menos ressentimento mútuo. Um pouco de sobriedade nas nossas vidas, à saída da quadra festiva, com menos consumo supérfluo, menos desperdício, menos egocentrismo.

É irónico que tenha sido um político hiperativo, um tanto excessivo, dado a largos gestos retóricos, a introduzir o tema da sobriedade no espaço público. Há cerca de um ano, anunciando “o fim da abundância”, Emmanuel Macron prescrevia uma sobriedade energética face à crise no abastecimento de combustíveis fósseis, em consequência da invasão da Ucrânia – “devemos reentrar coletivamente numa lógica de sobriedade” e “preparar um plano para evoluirmos para uma situação de menor consumo”, disse ele. Ninguém o levou a sério.

Velha virtude moral, a sobriedade regressa com a caução da ciência. No seu sexto relatório de avaliação, o IPCC dá-nos a sua definição para a era do Antropoceno: “um conjunto de medidas e práticas do quotidiano que permitam evitar a procura de energia, de materiais, de terras, de água, garantindo, em simultâneo, o bem-estar de todos os humanos no respeito pelos limites planetários”.

Assim colocada, a sobriedade despe-se do pendor metafísico e afigura-se uma exigência ecológica inegociável. Como alguém escreveu, vivemos, nas sociedades industriais, acima das nossas possibilidades ecológicas. A nossa casa comum já não basta para nos mantermos no atual ritmo de consumo.

Não se trata de nos privarmos daquilo que nos faz falta mas sim daquilo que não nos faz falta. De ponderar a real serventia de cada objeto, de cada bem de consumo. Não se trata de acatar instruções, mas de exercer o nosso livre-arbítrio, de fazer escolhas lúcidas: não comprar por impulso. Não comprar duplicado. Não tirar o carro da garagem para percorrer 2000m. Conduzir mais devagar. Viajar menos de avião. Reciclar mais. Ter menos luzes ligadas. Menos tempo de torneira aberta. Tudo bem ponderado, seriam resoluções mais simples de cumprir do que aquelas que tradicionalmente acabam nas listas de fim de ano, como não mentir, não cobiçar, não procrastinar.

Numa época despossuída das virtudes clássicas que foram, durante milénios, o cerne da educação cívica, alguma coisa do velho preceito da Antiguidade perdurou na publicidade a bebidas alcoólicas: “beba com moderação”. Mas, então, tudo o mais deve ser consumido imoderadamente? Sacralizamos o poder de compra, mas em que momento o poder de compra se torna num poder de participar na delapidação dos recursos naturais e na conspurcação do ar que respiramos, do solo que cultivamos, da água que bebemos? Impõe-se uma ética do consumo, numa responsabilidade partilhada entre produtores e consumidores.

A sobriedade permite aceder à liberdade. A um domínio de si mesmo. A um eu soberano. É um desprendimento. É o contrário do desejo insaciável, da posse pela posse. Por isso, ela aproveita ao comum – a um equilíbrio do comum. Isso faz da sobriedade uma virtude política.

Bem sei que o que peço é impossível, que o meu voto é quimérico. Vem aí uma campanha eleitoral, e outra, e outra. Os bombos soam já, os megafones, as arruadas. Os diários de campanha, os comícios e os debates, as diatribes, os soundbites. E eu próprio dificilmente praticarei a almejada sobriedade. Como sentenciava La Fontaine, “não há alma viva/ que em sobejo não peque./ O nada em excesso é lema/ que anda na baila/ mas ninguém observa”. Também eu pecarei. E, pecando, dir-me-ei: como esta campanha para as eleições legislativas era evitável, tivesse ao menos havido… um pouco de sobriedade.