Não haveria, para eles e elas, pior forma de acabar um ano e começar outro. A administração do grupo Global Media - proprietário do “Jornal de Notícias” (JN) , “Diário de Notícias”, “O Jogo” e TSF - informou, nos últimos dias de dezembro, que não pagaria os salários e, até hoje, nem sequer acionou o fundo de garantia salarial. No JN, a poucas horas da passagem de ano, dezenas de colaboradores a recibos verdes foram avisados que as suas "prestações de serviços" cessariam no dia seguinte. Para além da violência expulsiva que é atirar estas pessoas borda fora, privando-as do seu trabalho e do seu rendimento, a decisão é trágica para o jornal, que tem nestes correspondentes a voz do país, de norte a sul, e um elemento essencial da sua identidade.
Ao incumprimento de obrigações com os trabalhadores, soma-se a pressão para a rescisão e a ameaça de um despedimento coletivo que pode chegar a 200 pessoas. Os títulos do grupo, com o JN a TSF à cabeça, estão em risco de vida. Face a estes acontecimentos amargos, milhares de jornalistas contribuíram para um fundo solidário que já fez chegar algum dinheiro aos camaradas em aflição. E foi convocada uma greve para o próximo dia 10 de janeiro, que envolve os trabalhadores da Global Media mas também todos os jornalistas que queiram associar-se em solidariedade. Gestos de dignidade.
De facto, qualquer um deste títulos é demasiado importante para o frágil ecossistema da comunicação social em Portugal para ser a presa de interesses obscuros e de fundos sem rosto, mas com porta-vozes que espalham brasas. A história mal contada deste processo já vem de trás, com “investidores” que descapitalizaram o grupo, alienaram património e meteram lucros ao bolso. Mas atinge agora foros de absurdo. José Paulo Fafe, porta-voz do fundo sediado nas Bahamas, que passou a ser maioritário no grupo, faz declarações que desvalorizam as marcas, usa números falsos sobre a circulação e provoca um clima de terror junto dos trabalhadores. E surge em aparente arrufo com Marco Galinha, antigo presidente da comissão executiva, cujas tentativas de ingerência ilegal em decisões da direção editorial do JN foram em tempos travadas pela Entidade Reguladora da Comunicação Social.
A averiguação por parte da ERC devia começar por aqui. Quem são afinal os verdadeiros proprietários destes órgãos? Têm porventura a idoneidade indispensável para tão relevante poder? E que projeto está por trás destas decisões recentes? Quais as motivações, editoriais, políticas ou outras, para desvalorizar publicamente os títulos e para rebentar com jornais que dão lucro (como acontece com o JN, que vende 30 mil exemplares por dia e é líder no online, ou com O Jogo)? Por que não mobiliza a ERC todos os instrumentos legais que permitem impedir acionistas desconhecidos de tomar decisões?
Mas há outros esclarecimentos. Se houve má gestão, como tudo indica, quem beneficiou com ela? Para onde vai a receita que os títulos geram? Para onde foram, por exemplo, os quase 10 milhões da venda do histórico edifício do JN no centro do Porto a acionistas chineses do grupo Global Media? Onde andará a importante coleção de arte do JN, e em que condições está o arquivo?
E há ainda a questão dos despedimentos. Portugal é uma economia de mercado, mas é também um Estado de direito. O despedimento é um ato possível, mas não é livre. Isto é: não basta invocar “motivos de mercado, estruturais ou tecnológicos” para que seja lícito. A liberdade económica não é um valor absoluto e os fundamentos para um despedimento não são insindicáveis. Mesmo os motivos económicos têm de ser validados, a sua validade tem de ser aferida pela administração do trabalho, os organismos públicos têm de acompanhar o processo, têm de ser invocados motivos sujeitos a um juízo de proporcionalidade. Ora, até ver, nada disto aconteceu e tudo o que temos é passar para os trabalhadores o custo de decisões incompreensíveis e injustificáveis.
Daí a solidariedade necessária - e o compromisso que nos convoca. Por estarmos perante um exemplo do abuso e de impunidade económica que tem de ser esclarecido e submetido a regras. E por estar em causa o equilíbrio e a pluralidade da comunicação social, a sobrevivência de títulos de referência, de uma rádio insubstituível, do único jornal nacional com uma redação central no Norte. Ou seja, por se tratar da democracia.