Sabemos que a pandemia obrigou as vítimas de violência doméstica a conviverem com os seus carrascos, dia após dia, hora após hora, sem hipótese de fuga. Agora, sabemos também que a crise na habitação, a par do aumento do custo de vida – ao qual se soma também a desigualdade salarial – continua a obrigar as mulheres a permanecerem sob o mesmo teto dos seus agressores.
O que estamos à espera que lhes aconteça? Estamos a falar de vidas que estão em risco, tal como nos mostram os números do Relatório Anual de Segurança Interna e do Observatório das Mulheres Assassinadas, da UMAR: das 30488 denúncias de violência doméstica feitas no ano passado, a esmagadora maioria das vítimas eram raparigas ou mulheres, já 80% dos denunciados eram homens.
Desde janeiro, já foram assassinadas 25 mulheres e registadas 38 tentativas de homicídio, em ambos os casos, maioritariamente também em contexto de intimidade. A própria casa é o local mais perigoso para as mulheres.
A estes dados, somam-se outros: em 2022, foram feitas 519 participações pelo crime de violação, sendo que cerca de 93% das vítimas eram mulheres e 98% dos arguidos eram homens. Números bastante semelhantes quando falamos de abuso sexual de menores. Também só no ano passado, foram registados nos nossos hospitais 190 casos de mutilação genital feminina.
E por falar em hospitais, falemos também dos casos de mulheres a quem é amiúde negada a interrupção voluntária de gravidez, um direito previsto na lei. Assim como crescem as denúncias de situações de violência obstétrica, uma realidade tão incómoda, que quem representa a comunidade médica continua a preferir negar a sua existência. Já se sabe que as mulheres são histéricas, ardilosas e mentirosas, pelo menos é o que historicamente sempre se disse, e continua a dizer, como ponto de partida sobre as mais diversas vítimas de violência que ousam quebrar o silêncio.
A manutenção da violência de género contra as mulheres vive também desta desconfiança história sobre o sexo feminino, fomentada por uma mentalidade estruturalmente misógina. O machismo continua a matar. Para quebrarmos este ciclo, a educação para a cidadania não é só pertinente, é urgente.
Ser menina e mulher: um fator de risco mundo fora
Do nosso país para o resto do mundo, ser menina e mulher continua a ser, invariavelmente, um fator de risco. Assassinadas maioritariamente dentro das suas próprias casas, assediadas e abusadas sexualmente, não só na rua – como se gosta de fantasiar – mas, e acima de tudo, também dentro de casa, das escolas, dos locais de trabalho, dos transportes públicos, até mesmo dos hospitais.
Vivemos num mundo onde meninas e mulheres continuam a ser traficadas e exploradas tal qual mercadoria, mutiladas, torturadas, mantidas em cativeiro a bem da religião, impedidas de estudar, policiadas e castigadas se não cumprirem a moral e bons costumes impostos pelos homens.
Este sábado assinala-se mais um Dia Internacional para a Eliminação da Violência Contra as Mulheres, com grandes marchas de protesto, inclusive por cá. Se continuam a não perceber por que é que é necessário sair à rua e gritar por mudança, percam um pouco do vosso tempo a olhar, por exemplo, para alguns dos títulos que enchem jornais: “Violação choca Itália: sete homens detidos por abuso a jovem de 19 anos”; “Mississípi: menina de 13 anos dá à luz depois de ter sido violada e lhe terem negado um aborto”; “Corpo de mulher desaparecida há um ano encontrado no frigorífico do namorado”; “Senador francês é detido por suspeita de drogar mulher para agressão sexual”; “Encontrada mulher mantida em cativeiro como ‘escrava sexual’ dentro de jaula para cães”; “Brasil: Médico anestesista preso por violar grávida durante cesariana”; “Aluna de 12 anos violada por treinador de artes marciais em Viseu”; “Irão: Armita, 16 anos, está em coma depois de um ataque da polícia da moralidade”; “Mulher é amarrada, espancada e torturada com mangueira por marido”; “’Na hora de o fazer não gritou’, frase ouvida por mulheres vítimas de violência na hora do parto”; “Polícia liberta cinco mulheres vítimas de exploração sexual em Espanha”; “ Dois anos depois da tomada do poder pelos talibãs, mulheres afegãs estão a ser “apagadas de tudo”; “Em nove anos, foram detetados 835 casos de mutilação genital feminina em Portugal”; “ Menina de 9 anos é resgatada em armário após ser sequestrada por suspeito de pedofilia”; “Mulher trans é morta com tiro de espingarda no rosto”; “Menina é forçada a casar com homem de 40 anos em Bangladesh”; “Youtuber iraquiana é morta pelo pai em defesa da ‘honra’ da família”; “Mulher violada com ameaça de faca quando caminhava para casa em Lisboa”.
Podia continuar a fazer copy-paste de títulos como estes o resto do dia, todos eles de notícias recentes. Repito, portanto, a pergunta que abre este texto: como querem que as mulheres tenham sossego se ainda andamos nisto?