Opinião

Como querem que as mulheres tenham sossego se ainda andamos nisto?

Em 2022, foram apresentadas 30 mil denúncias de violência doméstica em Portugal. Ou seja, há uma a cada vinte minutos. Desde janeiro, foram assassinadas 25 mulheres, na sua maioria em contextos de intimidade. Números que nos deviam deixar agoniados, ao invés de apáticos, como se fosse só um mal menor

Sabemos que a pandemia obrigou as vítimas de violência doméstica a conviverem com os seus carrascos, dia após dia, hora após hora, sem hipótese de fuga. Agora, sabemos também que a crise na habitação, a par do aumento do custo de vida – ao qual se soma também a desigualdade salarial – continua a obrigar as mulheres a permanecerem sob o mesmo teto dos seus agressores.

O que estamos à espera que lhes aconteça? Estamos a falar de vidas que estão em risco, tal como nos mostram os números do Relatório Anual de Segurança Interna e do Observatório das Mulheres Assassinadas, da UMAR: das 30488 denúncias de violência doméstica feitas no ano passado, a esmagadora maioria das vítimas eram raparigas ou mulheres, já 80% dos denunciados eram homens.

Desde janeiro, já foram assassinadas 25 mulheres e registadas 38 tentativas de homicídio, em ambos os casos, maioritariamente também em contexto de intimidade. A própria casa é o local mais perigoso para as mulheres.

A estes dados, somam-se outros: em 2022, foram feitas 519 participações pelo crime de violação, sendo que cerca de 93% das vítimas eram mulheres e 98% dos arguidos eram homens. Números bastante semelhantes quando falamos de abuso sexual de menores. Também só no ano passado, foram registados nos nossos hospitais 190 casos de mutilação genital feminina.

E por falar em hospitais, falemos também dos casos de mulheres a quem é amiúde negada a interrupção voluntária de gravidez, um direito previsto na lei. Assim como crescem as denúncias de situações de violência obstétrica, uma realidade tão incómoda, que quem representa a comunidade médica continua a preferir negar a sua existência. Já se sabe que as mulheres são histéricas, ardilosas e mentirosas, pelo menos é o que historicamente sempre se disse, e continua a dizer, como ponto de partida sobre as mais diversas vítimas de violência que ousam quebrar o silêncio.

A manutenção da violência de género contra as mulheres vive também desta desconfiança história sobre o sexo feminino, fomentada por uma mentalidade estruturalmente misógina. O machismo continua a matar. Para quebrarmos este ciclo, a educação para a cidadania não é só pertinente, é urgente.

Ser menina e mulher: um fator de risco mundo fora

Do nosso país para o resto do mundo, ser menina e mulher continua a ser, invariavelmente, um fator de risco. Assassinadas maioritariamente dentro das suas próprias casas, assediadas e abusadas sexualmente, não só na rua – como se gosta de fantasiar – mas, e acima de tudo, também dentro de casa, das escolas, dos locais de trabalho, dos transportes públicos, até mesmo dos hospitais.

Vivemos num mundo onde meninas e mulheres continuam a ser traficadas e exploradas tal qual mercadoria, mutiladas, torturadas, mantidas em cativeiro a bem da religião, impedidas de estudar, policiadas e castigadas se não cumprirem a moral e bons costumes impostos pelos homens.

Este sábado assinala-se mais um Dia Internacional para a Eliminação da Violência Contra as Mulheres, com grandes marchas de protesto, inclusive por cá. Se continuam a não perceber por que é que é necessário sair à rua e gritar por mudança, percam um pouco do vosso tempo a olhar, por exemplo, para alguns dos títulos que enchem jornais: “Violação choca Itália: sete homens detidos por abuso a jovem de 19 anos”; “Mississípi: menina de 13 anos dá à luz depois de ter sido violada e lhe terem negado um aborto”; “Corpo de mulher desaparecida há um ano encontrado no frigorífico do namorado”; “Senador francês é detido por suspeita de drogar mulher para agressão sexual”; “Encontrada mulher mantida em cativeiro como ‘escrava sexual’ dentro de jaula para cães”; “Brasil: Médico anestesista preso por violar grávida durante cesariana”; “Aluna de 12 anos violada por treinador de artes marciais em Viseu”; “Irão: Armita, 16 anos, está em coma depois de um ataque da polícia da moralidade”; “Mulher é amarrada, espancada e torturada com mangueira por marido”; “’Na hora de o fazer não gritou’, frase ouvida por mulheres vítimas de violência na hora do parto”; “Polícia liberta cinco mulheres vítimas de exploração sexual em Espanha”; “ Dois anos depois da tomada do poder pelos talibãs, mulheres afegãs estão a ser “apagadas de tudo”; “Em nove anos, foram detetados 835 casos de mutilação genital feminina em Portugal”; “ Menina de 9 anos é resgatada em armário após ser sequestrada por suspeito de pedofilia”; “Mulher trans é morta com tiro de espingarda no rosto”; “Menina é forçada a casar com homem de 40 anos em Bangladesh”; “Youtuber iraquiana é morta pelo pai em defesa da ‘honra’ da família”; “Mulher violada com ameaça de faca quando caminhava para casa em Lisboa”.

Podia continuar a fazer copy-paste de títulos como estes o resto do dia, todos eles de notícias recentes. Repito, portanto, a pergunta que abre este texto: como querem que as mulheres tenham sossego se ainda andamos nisto?