Opinião

O rato que a montanha pariu e o elefante que ficou no meio da sala

A Operação Influencer veio mostrar que o Ministério Público tem uma “hierarquia” que “é incapaz ou não tem coragem de pôr travão a atos de investigação criminal manifestamente desproporcionais”. E que os procuradores que mandaram deter, sem razão, os cinco arguidos deviam prestar contas. Até monetariamente

O acesso à informação respeitante à atividade do MP é assegurado nos termos da lei. Isto é, nas situações em que a lei prevê esse acesso e nas condições que fixa para que o acesso se concretize.

Do ponto de vista do processo criminal, o acesso a essa informação poderá ocorrer diretamente, desde que demonstrado o interesse legítimo nesse acesso. Ocorrerá indiretamente, por via do resultado do trabalho dos órgãos de comunicação social, ou pelo conhecimento de esclarecimentos que o próprio MP prestar. Esses esclarecimentos, quando promovidos por iniciativa exclusiva do MP, só devem surgir quando forem necessários ao restabelecimento da verdade e não prejudicarem a investigação, para garantir a segurança de pessoas e bens ou a tranquilidade pública.

Duvido sobre o sucesso do MP no estabelecimento da tranquilidade pública, após os esclarecimentos que prestou no passado dia 7, ou no complemento que fez no dia 10. Facto é que alguém no MP considerou necessário dizer que, além do mais, o Primeiro-Ministro (PM), não sendo arguido, é sujeito de uma investigação criminal por factos relacionados com os que motivaram a detenção do seu chefe de gabinete e de outras pessoas e a mobilização de uma parafernália de agentes da justiça.

Ao fim de uma semana de descaradas fugas de informação que fizeram pendant perfeito com os esclarecimentos do MP, as cinco pessoas foram libertadas por ordem do juiz de instrução e uma delas, aliás, sem que o juiz considerasse indiciada a prática de qualquer crime. No meio, soubemos que uma das transcrições das escutas que foi leakada referia-se a António Costa, quando a gravação da conversação telefónica registou um apelido adicional, e que o MP se enganou na referência a um dos diplomas do Governo alegadamente resultado do dito plano criminoso. Se tudo isto se passou na parte da investigação que levou o MP a mandar deter cinco pessoas com toda a pompa e circunstância que aqueles esclarecimentos serviram de papel de embrulho, teme-se o que poderá estar – ou não estar – entre a investigação paralela sobre as ditas suspeitas que recaem sobre o PM.

O passar da semana e a relativa tranquilidade trazida pela decisão do juiz sobre as medidas de coação aplicadas deveriam obrigar-nos a uma reflexão sobre o estado das coisas no seio do MP e da sua hierarquia. Deixemo-nos de hipócritas frases-feitas e preconceitos sobre um pretenso dever ser de não refletir estruturalmente em cima de casos e processos concretos e reconheçamos que eles são os espelhos e a demonstração da realidade e, por isso mesmo, a justificação necessária para que se pense seriamente sobre onde estamos e para onde queremos ir.

Podemos estar perante um MP em que o topo da sua hierarquia é incapaz ou não tem coragem de pôr travão a atos de investigação criminal manifestamente desproporcionais, exacerbando a sacrossanta autonomia do MP a uma ideia (sem apego na lei) de que os procuradores não podem receber ordens da hierarquia no exercício das suas competências de investigação criminal. Não só podem, como a lei manda que devem receber. Mas admitindo a hipótese de estar errado, se não podem, então deviam poder. Não é possível falar com seriedade sobre uma estrutura hierarquizada e depois andar a pregar aos sete ventos a anarquia.

Mas também podemos estar perante um MP que deu luz verde a atos de investigação criminal manifestamente desproporcionais, publicitando-os ao ponto de concretizar desenvolvidamente o que se investiga, quem se investiga e quem se vai investigar.

Inequivocamente, estamos perante um MP que rotulou cinco detidos como possíveis fugitivos, persistentes criminosos e perturbadores da investigação criminal, da ordem e da tranquilidade públicas, mas sem que o MP entenda dever ter a obrigação de explicar a razão de ser desses rótulos, como se não tivesse de explicar, também, que verdade havia a restabelecer que fez emergir a necessidade desse esclarecimento, sem a qual o mesmo só poderá ser tido como absolutamente ilegal.

E é este o MP que queremos? Um MP que tudo pode e tudo manda, que só presta as contas que entende dever prestar? Um MP para quem autonomia é sinónimo de irresponsabilidade e que mais do que estar ao lado dos Tribunais, parece querer estar acima destes? Um MP que manda deter pessoas que, com mais certezas do que dúvidas, se apresentariam livremente se apenas fossem meramente chamadas? A bem do circo, do espalhafato e das condenações públicas antecipadas?

Os paladinos da pureza do MP logo se apressaram a dizer que nunca foi intenção do MP a demissão do PM. Mas alguém achava que aquele deslocado último parágrafo não poderia, além do mais, provocar isso mesmo? A emenda é pior do que o soneto, porque tomando-nos a todos como acéfalos ou idiotas, passa simultaneamente um atestado de incompetência à cúpula do MP.

Será desta que o poder político perde de vez o medo em discutir o MP que temos e que queremos ter? O que é preciso mais para que isso aconteça? Haverá, realmente, alguém que possa dizer que está tudo bem?

Após a libertação daqueles cinco detidos muitos afirmaram que a decisão de libertação, antagónica à enormidade que o MP tinha promovido quanto às medidas de coação, é a expressão de que o sistema funciona. Pois bem: está na hora de levar o funcionamento do sistema até onde a lei o permite.

Se a maioria dos detidos foi privado da sua liberdade por razões que a lei não permitia, os responsáveis por essas detenções deveriam ser chamados a indemnizar pelos danos provocados por essas detenções ilegais. E talvez não fosse pior um sistema onde a responsabilização indemnizatória não devesse depender apenas da iniciativa do lesados, as mais das vezes legitimamente receosos de espoletar uma ação de indemnização que poderá ter como consequência a responsabilização direta daquele procurador que ainda poderá tomar outras decisões com impacto negativo sobre aquele. Um mecanismo legal que previsse o ressarcimento automático dos lesados de decisões ilegais do MP, talvez fosse o contrapeso ideal para refrear o justicialismo de alguns dos seus agentes.

Se o MP prestou informações públicas sobre processos criminais à margem dos pressupostos e das condições que a lei fixou, talvez não baste ficarmo-nos apenas pela crítica quase unânime dessa atuação e deva ser altura de trazer à responsabilidade o(s) seu(s) autor(es). A autonomia do MP não lhe permite agir imune à obediência devida à lei, cabendo aos demais órgãos de soberania o exercício das competências que a lei lhes confiou para que à prática de atos ilegais corresponda a reação legalmente devida. Caso contrário, corremos o risco sério de trocar um elefante no meio da sala, de que ninguém quer falar, por um touro numa loja de porcelanas. Por este andar, não haverá cola para tantos cacos.