Para se ser uma verdadeira potência é preciso estar (ou pelo menos parecer) disponível para usar a força. Para a Europa ser uma potência, seria necessário que 27 Estados membros estivessem dispostos a ameaçar fazê-lo, em conjunto e do mesmo lado. Não estão. Porque nem sempre estão de acordo e porque raras vezes estão disponíveis para combater. A História da impotência europeia é esta. Não são os Tratados, as vaidades ou a falta de um exército comum. Por muito que isso custe a quem pensa o mundo a partir de Bruxelas.
A guerra da Ucrânia é excecional por vários motivos. A clareza moral do que está em causa é óbvia. Só numa pequena minoria obcecada com um ódio antigo aos Estados Unidos da América persiste a preferência por quem quer que esteja do lado oposto à América. A clareza da ameaça também foi facilmente percebida. O desejo expansionista de Putin ficou evidente. E os territórios em causa, também. O receio que os bálticos, os polacos, até os nórdicos têm de Moscovo (ou São Petersburgo, tanto lhes faz), foi percebido e sentido até Lisboa. E, com o respaldo americano, a disponibilidade para combater foi transformada em disponibilidade para armar. É quase estar disposto a entrar em guerra.
Com a competição económica com a China a transformar-se em tensão e afastamento estratégico, a guerra da Ucrânia criou a ilusão de que a Europa estava no campeonato das grandes potências. Deu um grande passo na construção da perceção de interesse comum, e do que teria de ser o seu papel regional, mas não está.
O conflito desencadeado pelo ataque brutal do Hamas no sul de Israel veio recordar os limites, mas também o potencial, do poder da Europa.
Em Bruxelas, e entre quem comenta a Europa, lamenta-se a falta de relevância europeia neste processo e acusa-se Von der Leyen de ter assumido um papel que não tinha. Como se na sua ausência, o papel da Europa e os protagonistas fossem evidentes.
Os governos dos 27 Estados membros da União Europeia não só não estão de acordo sobre o que se passa no Médio Oriente, como não são capazes de concordar quanto ao que se deveria passar quando esta guerra acabar. Claro que concordam no essencial, mas discordam em demasiados detalhes. E, enquanto os EUA mandaram um porta-aviões para o extremo leste do mediterrâneo, os europeus nunca estariam disponíveis para mandar um soldado que fosse para o extremo oriental da Ilha de Chipre, para a eventualidade de ser preciso disparar um tiro para ao ar se o Irão ameaçasse envolver-se no conflito. Esta impotência, no entanto, não é absoluta.
Nos primeiros dias do conflito, o comissário europeu para a Vizinhança e Alargamento, o húngaro Olivér Várhelyi, anunciou a suspensão da ajuda europeia à Palestina. No meio do que se está a passar, a Europa queria saber se o imenso dinheiro que dá vai parar às mãos do Hamas. Dias depois a Comissão Europeia anunciou que afinal ia triplicar a ajuda. Entre uma coisa e outra, a influência regional europeia não se alterou, nem alterou coisa nenhuma. Aqui sim, está um problema com solução.
Durante décadas, a União Europeia convenceu-se de que a sua política externa, em forma de grande ONG, espalhando dinheiro e boas práticas pelo mundo, era o seu grande poder. Quando as tensões começam e os conflitos disparam, aparentemente isso não vale grande coisa. Está a ser assim na guerra entre o Hamas e Israel. Foi ainda mais assim quando o Azerbaijão decidiu pôr fim, pela força, ao independentismo do Nagorno-Karabach.
Isto dito, ignorar em absoluto o peso da Europa no mundo, a influência, até regulatória, ou como conta para o comércio internacional, é oscilar entre o tudo ou nada. A Europa conta.
A alternativa à impotência europeia nos grandes conflitos não é impor a vontade da maioria. Pior do que esta ausência seria uma Europa a dizer o que parte dos seus governos rejeita. Ou, pior, a combater contrariada. Não sobreviveria.
A Europa é isto. Uma organização voluntária de 27 Estados soberanos que não deixaram de o ser. O problema da política externa europeia não está nos telefones, na voz, nas armas, nas maiorias. Está na incapacidade de ter uma perceção comum do que é o seu interesse. Coisa que os americanos, mesmo quando mudam de governo, normalmente têm (sendo Trump a maior e mais preocupante exceção). Se a UE fosse capaz de o fazer, talvez os milhões pudessem compensar a ausência de disponibilidade para usar armas. O que falta aos europeus é uma leitura comum do mundo. Pelo menos do mundo à sua volta. O que se torna mais difícil e mais grave, agora que o mundo está a ficar mais perigoso.