Opinião

Guerra

Ter medo da polarização social e política em 2023 é simplesmente ter medo de estar vivo - aceitável, mas irrelevante enquanto argumento contra a ação política. (…) Serão necessárias ações como as que o Climáximo fez nas últimas semanas e nos últimos anos, e muitas mais. Garantias de que será isto que finalmente funciona, temos poucas. O que é garantido é que repetir o que foi feito até aqui não vai permitir acabar com esta guerra

Assistimos, via X, Instagram, outras redes sociais e imprensa (é cada vez mais difícil distinguir os conteúdos) ao massacre que ocorre na Palestina. Toda a violência, a banalização do mal e propaganda crua podem ser vistas como um ensaio geral da normalização da morte de centenas de milhões de pessoas nas próximas décadas. O esforço narrativo é cada vez mais simples, sem nuances ou subterfúgios: o poder pode matar, e mata. O capitalismo económico e político declarou guerra até à morte a toda a Humanidade e a sua ferramenta principal é a crise climática.
Desde o início de Outubro que o Climáximo, coletivo ao qual pertenço há vários anos, lançou um conjunto de ações para romper a normalização da crise climática em Portugal. Já aconteceram inúmeros cortes de estradas, incluindo a 2ª Circular em Lisboa, a invasão do World Aviation Festival, o cimentar dos buracos do campo de golfe do Lumiar, a pintura e quebra de vidros da sede da REN, a pintura da proteção em acrílico de um quadro de Picasso, o bloqueio de um voo da TAP entre Lisboa e o Porto, entre outras. A mensagem também é simples: governos e empresas declararam guerra às pessoas e ao planeta. A distância não me permite participar nas ações, mas apenas aplaudir a coragem e a determinação histórica destes militantes.
Há quem interprete a mensagem como uma metáfora ou uma hipérbole. Infelizmente é um eufemismo. O custo de mortalidade de carbono atribui ao nível de emissões de gases com efeito de estufa em cada ano uma mortalidade acrescentada anual de mais 9 milhões de mortes nas próximas décadas (usam emissões ao nível de 2021, mas subiram desde então, devendo chegar aos 11,4 milhões de mortes extra devido às emissões de 2022). Este número é uma subvalorização, correspondendo principalmente a mortes por calor em excesso, às quais se acrescentarão combinações de fenómenos climáticos extremos, disrupção do abastecimento de comida, de água limpa, de energia, de comércio e todos os fenómenos sociais e políticos ligados diretamente aos anteriores. E quanto mais as emissões aumentarem, pior será.
Governos e empresas que passaram as últimas décadas a desvalorizar e até a negar a existência de crise climática procuram neste momento fórmulas comunicativas para desvalorizar os protestos, em Portugal como em outros países. As mais banais respostas por cá prendem-se com a radicalidade ou o anticapitalismo do Climáximo.
O Climáximo sempre afirmou a radicalidade da sua ação e análise política. O que seria confortável para todos os agentes deste sistema - de ministros a empresas de comunicação, de bots de Elon Musk a comentadores ou seitas de extrema-direita - seria a manutenção de um movimento ambientalista ou ecologista que se sentasse confortavelmente em reuniões com empresas e governantes para pedinchar migalhas de um programa parcial - isso já existe e não tem nenhuma relação com o Climáximo. A história do movimento ambientalista das últimas décadas é uma história de enormes derrotas e de consolidação da impotência, e de alianças verdes-centristas que venderam o seu programa por meia dúzia de deputados e ministros. É por isso que o movimento pela justiça climática rompeu há décadas com o movimento ambientalista, recusando a impotência.
Ter programas parciais ou setoriais para falar de pequenos ajustes num sistema que declarou guerra à Humanidade seria efetivamente aceitar o colapso num momento de urgência total. O capitalismo é a causa da crise climática e provou em todos os momentos que não vai resolvê-la, mas sim agravá-la. Sentar-se a falar com quem planeia ativamente o nosso colapso coletivo, quem publica os planos de guerra na imprensa e nos diários da República por esse mundo fora, é irracional. O Climáximo quer por isso travar a construção de novas armas, desarmar as que estão em funcionamento e, finalmente, um plano de paz para reparar a destruição ambiental e social que já aconteceu.
Outra resposta já conhecida, do domínio da conspiração paranóica é de que haveria um partido por trás do Climáximo. Não há. Nenhum partido em Portugal (aliás, em outros países tampouco) tem planos reais para travar a guerra que foi declarada à sociedade, mesmo os que se reivindicam materialistas mas rejeitam mudar as suas políticas, estratégias e táticas perante a maior crise material da história. Seria bom que os partidos políticos tivessem relações reais e não instrumentais com os movimentos sociais, mas infelizmente a aceitação de tentar tudo e correr todos os riscos assumida por movimentos pela justiça climática não tem ainda um correspondente na esquerda institucional. De momento, apenas podemos assistir a partidos que apresentam um menu narrativo de álibis para a sua inação perante a crise climática e a crise social do capitalismo global.
O ataque da extrema-direita é expectável. Não só porque rejeitam a existência de alterações climáticas, mas porque o movimento pela justiça climática é uma das principais ameaças à hegemonia que a extrema-direita está a conquistar. Eles só têm a propor à sociedade as trevas do passado autoritário combinadas com o caos climático, prometendo mais muros, campos de concentração e campos de morte. Enquanto isso, o movimento pela justiça climática está e quer continuar a construir um programa político do futuro que resgate o conjunto da Humanidade da catástrofe, em vez de criar um novo feudalismo étnico que dure uma décadas.
Finalmente, existe a crítica que considera que o tipo de ações afasta as pessoas ou contribui para polarização da sociedade. Ter medo da polarização social e política em 2023 é simplesmente ter medo de estar vivo - aceitável, mas irrelevante enquanto argumento contra a ação política. Durante anos o Climáximo fez centenas de ações, que vão das banais manifestações - sozinho ou em alianças - a ocupações, invasões (dos ministérios, das empresas, dos locais onde se faz a maior quantidade de emissões), caravanas de centenas de quilómetros a pé pelas áreas mais afetadas por incêndios e seca, até as costumeiras “petições” que de pouco ou nada servem. Apesar de tudo o que aconteceu, governos e empresas nunca hesitaram em relação a promoverem a guerra contra a sociedade. Deve ser mantido o mesmo tipo de ações? Até quando? A próxima cimeira do clima vai ser chefiada pelo CEO de uma petrolífera e realizada num petroestado, o novo Comissário Europeu do clima vem da Shell, 2023 será certamente o ano mais quente alguma vez registado e as emissões de gases com efeito de estufa serão as mais altas de sempre (enquanto as petrolíferas realizaram os maiores lucros de sempre em 2022), os grandes investimentos internacionais anunciados são em mais infraestrutura fóssil e em mais capacidade militar. É também neste o contexto em que o governo põe em cima da mesa projetos como um novo aeroporto para aumentar os voos ou novos gasodutos para consolidar a indústria fóssil, enquanto as empresas procuram novas fontes de petróleo e gás em outros países. Apesar da diferenciação entre os planos de uns e outros, são os mesmos, são coordenados, articulados e precisos. São planos de aprofundar a guerra e aumentar o número de mortes o máximo que conseguirem até serem travados.
Para serem travados, serão necessárias ações como as que o Climáximo fez nas últimas semanas e nos últimos anos, e muitas mais. Garantias de que será isto que finalmente funciona, temos poucas. O que é garantido é que repetir o que foi feito até aqui não vai permitir acabar com esta guerra. Serão necessários além deste outros climáximos, maiores, melhores, mais sagazes. Esses terão de aprender com este.
Imaginar viver numa situação de guerra é complexo, especialmente quando há a repetição permanente de que vivemos e precisamos de “normalidade”, e quando a promoção do cinismo e da cobardia não pára. A “normalidade” está a garantir milhares de mortes todos os dias e uma inviabilização do futuro da nossa civilização. Responder com normalidade e moderação a uma situação de guerra é aceitar nem sequer reagir, apenas aceitar uma derrota que não será só individual, geracional ou de alguns grupos sociais, mas do conjunto da sociedade, ao contrário das guerras do passado. Não reagir perante a guerra que o capitalismo declarou à sociedade é aceitar o colapso. Sabendo isto, o que vai fazer?