No caldo político-ideológico dessa "outra Europa" pós-soviética, dilacerada entre o instinto de conservar a soberania resgatada à velha madrasta russa e a adoção do universalismo de uma UE pós-nacional, são motivo de preocupação crescente os partidos e governos eurofóbicos que, em vários países do Leste, corroem o Estado de direito ao mesmo tempo que se apropriam do Estado. Nessas paragens, o solo é fértil para a semente populista e o ambiente propício a personalidades polarizadoras, que usam a chantagem e o veto como moeda-corrente para levar a União aos arames.
Em parte, o sucesso dessas formações resulta de terem colocado a tónica num essencialismo nacional, por oposição a um cosmopolitismo dissolvente, agente do desenraizamento e da perda identitária, que identificam com a UE. Em muitos desses países, a UE é representada com os traços de uma potência estrangeira, imperturbada pelo sentimento nacional, e, pior, como uma porteira indulgente de imigrantes, propiciadora de uma “grande substituição” étnico-cultural. Os seus líderes surgem, assim, como uma espécie de procuradores providenciais da alma pátria, por contraponto a elites retratadas como agentes liquidatários da independência, a soldo da hegemonia tecnocrática de Bruxelas. Querem os benefícios financeiros da integração, mas nenhuma das regras e nenhum dos valores.
Não foi outro, nos últimos meses, o discurso de campanha do partido Lei e Justiça, na Polónia, com particular enfoque num tradicionalismo rural e católico. Apesar de ter sido o mais votado nas históricas eleições de domingo, esse partido não alcançou uma maioria no Parlamento que lhe permita continuar a governar. Tudo indica que será possível às forças da oposição, encabeçadas pelo ex-presidente do Conselho Europeu, Donald Tusk, firmarem um acordo de governação. Quererá isto dizer que uma maioria da população já não está disponível para a retórica dos inimigos internos e externos, para o ultraconservadorismo que pune cruelmente o aborto, ou para o duelo desgastante com a UE? Se assim for, e se a solução de Donald Tusk for viável, a Polónia, inesperadamente, poderá servir de antídoto para outras derivas iliberais, nacionalistas e eurofóbicas, presentes e futuras.
O fim do antagonismo a Bruxelas significará uma reaproximação à Alemanha e o enfraquecimento do grupo de Visegrado (que, para além da Polónia, integra a Hungria, a Chéquia e a Eslováquia). No passado, a Polónia foi um país com uma forte vocação europeísta ─ com pensadores e estadistas que teorizaram e defenderam soluções de unidade ou de federalismo europeu.
A hipotética reconciliação da Polónia com a União Europeia e o recobro da sua doença iliberal servem de lenitivo para o caso da Eslováquia, politicamente dos mais insólitos. O partido vencedor das eleições de 30 de setembro, o SMER, de Robert Fico, acolhe-se na família dos partidos socialistas europeus – o PES – não obstante ter sido irrigado pelo ideário nacional-populista do Fidesz de Victor Orban. É, pois, um ramo podre, mesmo que isolado e com fraca ou nula comunicação com os seus parentes. O PES fez o mínimo que se impunha e suspendeu esse partido, que avançou para uma coligação contranatura com a extrema-direita. Mas o SMER já tinha estado suspenso entre 2006 e 2008, pela mesmíssima razão. E, em 2016, voltou a coligar-se com o Partido Nacionalista Eslovaco. O comportamento reincidente de Fico pedia outro desfecho: a saída definitiva do SMER – como defendeu o secretário-geral do PS, António Costa.
O caso da Eslováquia revela-nos o quão espinhoso é o caminho do próximo alargamento. Não fosse pelas sucessivas vagas do alargamento, a União seria ainda constituída pelos seis países que assinaram o Tratado de Roma. Portugal seria hoje uma nação marginal no continente – um país virtualmente inaudível. De certa forma, o alargamento é a alma mesma do projeto europeu. Mas, sem uma revisão dos mecanismos decisórios, sem o fim da unanimidade intergovernamental em várias matérias, o processo de construção europeia arrisca transformar-se numa gigantesca feira do gado onde os Orbans, os Ficos e outros aspirantes a autocratas vão licitar e vetar. É, por isso, incompreensível que o pedido formal de convocação de uma convenção para a revisão dos Tratados, submetido pelo Parlamento Europeu, a 9 de Junho de 2022, continue em águas de bacalhau, ainda sem calendário para a respetiva apresentação ao Conselho Europeu e aos parlamentos nacionais. Para além do descaso pela única instituição europeia diretamente legitimada pelo sufrágio universal, a morosidade e a complexidade de rever os tratados não pode ser desculpa para manter um statu quo insustentável e, a prazo, potencialmente suicidário.
Rui Lage, vice-presidente do Grupo Parlamentar do PS