Opinião

25 de Novembro, a cerca sanitária que Soares edificou e que um certo PS derrubou

Moedas tem razão: o 25 de Novembro é uma data a celebrar. Falta uma "cerca sanitária" na democracia portuguesa, a mesma que Soares sensatamente erigiu em 1975 e que António Costa derrubou 40 anos depois: a cerca que separa os democratas dos amantes de ditaduras comunistas. A memória de Soares merecia melhores herdeiros; mas, como em tantos outros casos, há sempre a tentação de matar o pai

Moedas tem razão: o 25 de Novembro é uma data a celebrar. Não sou eu que o digo, mas, atrevo-me a acrescentar que é uma data a celebrar hoje mais do que nunca. Abril só se cumpriu em Novembro; e, em bom rigor, mérito também de Moedas de trazer o assunto no 5 de Outubro, se pensarmos bem, o "governo de tipo Republicano", depois da balbúrdia e terror que foi a I República e dos 48 anos de ditadura, só se cumpriu, verdadeiramente, depois de 1975.

Digo que não sou eu que digo que Moedas tem razão, porque quem o disse – 13 anos antes – foi o autor das seguintes frases: "[O 25 de Novembro] é, na história contemporânea de Portugal, uma data tão importante, para a afirmação da democracia pluralista, pluripartidária e civilista que hoje temos, como a Revolução dos Cravos". E acrescentou: “Não tenho nenhum gosto de levantar polémicas passadas. Mas a verdade é que a memória histórica não deve ser esquecida. Sobretudo, quando os responsáveis de termos estado à beira da guerra civil, o Partido Comunista e a Esquerda radical nunca fizeram uma autocrítica a sério do seu comportamento passado, como lhes competia.”

Quem disse isto, hoje, seria, provavelmente, acusado de radical reaccionário, de divisionista, de populista e menosprezado pela Intelligentsia socialista, pelos Robespierre de franja do comentário político, pelos asnos que habitam as redes sociais e por um sem número de populistas e extremistas de esquerda com assento no Parlamento. Dá-se o caso de o autor destas frases – num artigo escrito na Visão em 2010, e a todos os títulos merecedor de leitura – ter sido Mário Soares, o herói civil do 25 de Novembro e fundador do Partido Socialista.

Mário Soares continua: “Contudo, a nossa Esquerda, a comunista e a radical, parece terem passado por tudo isto sem darem por nada, sem interiorizar qualquer reflexão, continuando a repetir os mesmos slogans de sempre. É triste! Porque contribui para inquinar o nosso futuro, já de si difícil e extremamente complexo.”

Quem é esta gente de quem Soares falava? Seria alguém, por exemplo, que se recusasse a expor, na Assembleia da República, uma exposição que já esteve no Parlamento Europeu – dessa Europa que Soares tanto quis co-construir –, onde se condenam todos os totalitarismos, do fascismo ao comunismo? Ou alguém que quisesse excluir a celebração do 25 de Novembro dos 50 anos do 25 de Abril no Parlamento? Ou alguém que, num lugar cimeiro do Estado, fosse incapaz, sem adversativas, de repudiar o insulto, o ataque e a expulsão de deputados do espaço público onde decorresse uma manifestação onde se destruía propriedade privada e onde se clamava "morte aos ricos"?

Pergunto: quem é esta gente, esta esquerda "comunista e radical"? Será alguém que, nos tempos em que estas questões essenciais à novel democracia portuguesa se digladiavam, militava na LCI, a Liga Comunista Internacionalista que se fundiu no trotskista PSR, de Francisco Louçã? Será alguém que, em 1976, apoiou Otelo Saraiva de Carvalho, o mesmo dos terroristas das FP25, contra o General Eanes?

Bem sei que, por estes dias, e para justificar o ignóbil, se tem citado Ramalho Eanes. O homem chave do 25 de Novembro disse, sobre a data, que "O 25 de Novembro foi um momento fracturante e eu entendo que não devemos comemorar, os momentos fracturantes não se comemoram, recordam-se e recordam-se apenas para refletir sobre eles." Percebo o ponto: em democracia e, ainda mais, em democracias res publicanas verdadeiras e funcionais, a dissensão impera em quase todas as coisas, pelo que a união e o consenso em torno das datas relevantes deve ser prezado. Porém, em tempos excepcionais, quando revoluções ou revisões históricas estão em curso, é fundamental voltar às datas higiénicas: as que separam os democratas dos outros.

Não deixa, por isso, de ser curioso que seja dentro do PS, o mesmo PS que "derrubou o muro" da democracia portuguesa – erigido precisamente no 25 de Novembro por Soares – e que disso se orgulhou para tomar o poder depois de ter perdido as eleições, que o oblívio dessa data tenha os seus principais responsáveis; a começar pelo Presidente da Assembleia da República. E não deixa de ser hipócrita que seja, precisamente, Augusto Santos Silva a "exigir" e a erigir as cercas sanitárias à direita, enquanto se refestela desavergonhadamente com as suas companhias radicais de sempre.

Ora, num tempo de "cercas sanitárias" – e digo-o a partir do conforto de ter subscrito o manifesto A clareza que defendemos – é muito sintomático que o PS opte pelo silêncio complacente com a extrema-esquerda e conivente com a sua ganância. É que, na verdade, falta uma "cerca sanitária" na democracia portuguesa, a mesma que Soares sensatamente erigiu em 1975 e que António Costa derrubou 40 anos depois: a cerca que separa os democratas dos amantes de ditaduras comunistas, a cerca que separa os que prezam a democracia liberal dos que vivem a alimentar o ódio aos ricos, aos proprietários, aos "pequeno-burgueses de fachada socialista" e a todos os que não partilham da sua ortodoxia destruidora do mundo livre e ocidental. A memória de Soares merecia melhores herdeiros; mas, como em tantos outros casos, há sempre a tentação de matar o pai.

_______________

PS 1 - Não há dia que não se fale da crise da direita, mas há uma crise maior, a cisão profundamente ideológica em que o PS está mergulhado. Honra – com a esperança de que o PS não esteja irremediavelmente perdido para a vergonha, negacionismo e radicalismo da extrema-esquerda – a todos os socialistas que desde 2015 e por estes dias se têm demarcado desta deriva.

PS 2 - Muitos destes extremistas são os mesmos que exibiram ontem nas redes sociais, a propósito do inqualificável ataque do Hamas a Israel, adversativas, quando não apoios incontestáveis, aos terroristas. Mas isto é outro tema. Uma coisa é certa: quem não se demarca desta gente é igual a esta gente.

Pedro Gomes Sanches escreve de acordo com a antiga ortografia