Neblina não religiosa: Os tempos recentes têm sido, no mínimo, desafiantes para a Igreja Católica. Desde os escândalos de pedofilia até aos económico-financeiros, desde séries na Netflix sobre casos com mais de 40 anos até à renúncia de cardeais por conta de propriedades em Londres, desde os cismas internos sobre questões como a revolução sexual até ao crescimento da desconfiança na instituição (53% dos portugueses, segundo a última sondagem do Expresso).
Na Europa, nas últimas décadas, tem-se assistido ao crescimento dos sem religião. Em França a maioria da população já não é católica; em Espanha, o número de agnósticos e ateus supera o dos católicos praticantes; nos Países Baixos, Chéquia ou Estónia, o número dos sem religião ou ateus ronda os 50%/60%. Em Portugal, segundo os últimos censos, 14% da população diz não ter religião. Se analisarmos a região com maior diversidade religiosa do país, a Área Metropolitana de Lisboa, esse número ascende quase aos 35%. Os valores relativamente aos jovens são ainda mais acentuados, com uma grande parte a viver à margem do fenómeno religioso e a acentuar uma tendência de destradicionalização.
A Igreja como um ‘resto’? Estes números ajudam a entender a tese de alguns, como o padre Anselmo Borges, que defendem que a Igreja já perdeu os intelectuais, a classe operária e os jovens e que, continuando neste trilho, se arrisca a perder as mulheres. Ora, isso não seria extraordinariamente preocupante se as mulheres não fossem a maioria da população nacional e se não correspondessem ao principal grupo dentro dos católicos.
Em Portugal, um dos subconjuntos mais feminizados é, de facto, o católico (cerca de 60%). Ou seja, no país, a maioria dos católicos são mulheres, com 64 ou mais anos, e pessoas com baixo nível de escolaridade, situadas em regiões predominantemente rurais ou semiurbanas. Se continuar a ignorar a incontornabilidade do papel da mulher na Igreja e na sociedade, a Igreja Mater et Magistra tenderá a tornar-se num resto, uma mera questão de liturgia ou fé, destinada à invisibilidade do espaço privado, como alertou Marcel Gauchet.
Jornadas ou Jubileu Mundial da Mulher: O Papa Francisco, atento às questões do clericalismo, das periferias e da exclusão feminina, tem apelado a uma mudança. No seu recente Instrumentum Laboris, o Papa pede duas coisas essenciais: i) maior reconhecimento e promoção da dignidade batismal das mulheres; ii) maior participação das mulheres na governação, na tomada de decisões, na missão e nos ministérios a todos os níveis da Igreja. Qualquer mudança estrutural leva tempo. No caso de mudanças de verdades intemporais, como as da Igreja, as mudanças têm o seu tempo próprio.
Este desejo de uma maior presença das mulheres em posições de responsabilidade e governação deveria, por isso, ser acompanhado de uma solução de médio prazo, no género das JMJ, mas dedicada às mulheres. Tal como sucedeu originalmente com as JMJ, a ideia de umas Jornadas ou de um Jubileu Mundial da Mulher seria um esforço no sentido do reforço da evangelização do mundo feminino, tanto ao nível diocesano (anualmente) como ao nível internacional (a cada quadriénio). Isso permitiria criar laboratórios de fé mais estratégicos e fazer nascer novas vocações, podendo servir de instrumento à própria transformação da Igreja. Uma Igreja sem a comunidade de fiéis não sobrevive, mas, sem as mulheres – o seu núcleo duro –, tenderá a viver pior.
As JMJ são um evento ao qual o Estado português, com relações com a Santa Sé desde a fundação do reino, se une num espírito de dinamização dos valores e interesses socialmente legítimos e de garantia do exercício da liberdade religiosa. As JMJ são também um momento para os 7,04 milhões de portugueses que se declararam católicos nos últimos censos (mais de 80% da população), mas não só, encontrarem o chefe de Estado eleito da Cidade do Vaticano. As JMJ são um instrumento de reforço da evangelização, mas podem ser também um momento de reflexão sobre por onde vai passar o futuro da Igreja(?).
O desaparecimento de uma memória religiosa vivida nas ações do quotidiano, sintoma duma neblina não religiosa, leva a que a temporalidade religiosa seja vivida assim, em momentos de pico, situados em grandes lugares sagrados. As JMJ são, provavelmente, um dos melhores exemplos daquilo a que a socióloga francesa Danièle Hervieu-Léger chamou celebrações efémeras e esporádicas de sociedades sem rituais. Para o bem da Igreja é bom que as JMJ sejam mais, bem mais do que isso.