A crise da habitação é mais grave, porque mais estrutural, do que a crise inflacionária. Ela corresponde a uma brutal perda de rendimentos, seja pelo aumento das rendas em Lisboa e Porto (e todos os concelhos em seu redor), Algarve e cada vez mais cidades do país. Ela tem efeitos económicos devastadores, tornando impossível a empresas e ao Estado contratarem pessoas para manter a economia viva (até aquela que o turismo alimenta) e os serviços públicos a funcionar. Ela cria uma brutal injustiça social e económica, transferindo dinheiro dos trabalhadores e das empresas (que têm de aumentar salários que não corresponderão a uma melhoria do nível de vida, já que o aumento vai todo para pagar a casa) para rendimentos especulativos.
Muitos falam do direito de quem fez poupanças ver o retorno. Claro que sim. Mas, como com tudo, as coisas não se podem desequilibrar de tal forma que o acumular de poupanças de uns esmifre completamente as poupanças de outros.
Não vale a pena queixarem-se do intervencionismo do Estado. A não ser meia dúzia de fanáticos que acham que o mercado trata sempre de si, todos sabem que quando há uma falha de mercado – e é isso que está a acontecer em Portugal e em grande parte do mundo industrializado –, o Estado intervém. E tanto pode intervir baixando impostos como aumentando-os, contruindo casas ou facilitando a sua construção, obrigando proprietários a pôr casas no mercado ou retirando casas de outras funções que não sejam habitação. A propriedade não é um direito ilimitado. Nunca foi em lado algum. Não existem, aliás, direitos ilimitados.
Quando há uma falha de mercado o Estado intervém. E tanto pode intervir baixando impostos como aumentando-os, contruindo casas ou facilitando a sua construção, obrigando proprietários a pôr casas no mercado ou retirando casas de outras funções. A propriedade nunca foi um direito ilimitado.
O mercado da habitação é complexo, com muitos intervenientes particulares que agem com mais ou menos racionalidade (os agentes económicos não agem todos com a mesma informação) e é quase impossível prever os efeitos de cada medida. Ainda mais um conjunto de medidas tão diversas como o que foi apresentado pelo governo. Haverá milhares de opiniões ligadas a milhares de interesses que se fingem preocupados com o bem comum. E a probabilidade de falhar, numa coisa destas dimensões, só se resolve por tentativa e erro.
Mais do que grandes afirmações de princípio, é preciso ser cuidadoso na análise de cada medida, porque o diabo está nos detalhes. Por isso, devemos, por agora, dar menos importância a quem está apenas interessado em afirmar as suas convicções ideológicas (apesar delas contarem sempre, como bússola), para que o debate público permita calibrar o impacto de cada medida. Sabendo que, como sempre, há quem vá perder para outros ganharem. É o sentido de qualquer reforma que procure soluções justas.
Mais casas públicas
Deixo de fora do debate medidas de emergência que são pacíficas para todos: o apoio ao pagamento de juros tendo em conta a taxa de esforço (imagino que a única resistência será do Banco de Portugal, que, alinhado com a sociopatia económica do BCE, vê o aumento das taxas de juro como uma forma de tirar poder de compra mesmo aos mais pobres) e o apoio aos mais aflitos no pagamento de rendas. São medidas sociais, fundamentais, mas que não visam corrigir o que se passa no mercado da habitação.
Neste campo, a única coisa que pode gerar dúvidas é a imposição aos bancos de taxas fixas. Não os impedirá de definir taxas insustentáveis e a resposta do primeiro-ministro, de que a concorrência entre bancos resolve isso, é absurda: quem desistiu da taxa fixa desistiu de concorrer nessa oferta.
Já perdi a conta às vezes que o escrevi: Portugal tem um mercado público de habitação raquítico (2%) quando comparado com a média europeia de 12% de habitação acessível. Preço de um passado marcado pela crença absoluta no mercado, que deixou para o Estado apenas a habitação social para os mais pobres, numa lógica assistencialista. Ainda recentemente, casas camarárias destinadas à classe média, no centro de Lisboa, serviram para uma campanha demagógica do “Observador” e dos ativistas da Iniciativa Liberal, por haver quem precisasse mais de casa. Recusam o papel regulador de mercado da oferta pública em todos os setores.
Portugal tem um mercado público raquítico. Resulta de uma crença absoluta no mercado que deixou para o Estado apenas a habitação para os mais pobres, numa lógica assistencialista. Mas é irrealista pensar que daremos o salto necessário em poucos anos.
Seja como for, é irrealista pensar que daremos o salto necessário em poucos anos, com as absurdas regras de contratação pública que temos. Construir mais e mais rápido é fundamental e uma medida a que se ligou pouco – a construção modular, mais barata e rápida e de qualidade, que foi experimentada em Barcelona – pode ajudar. Para acelerar o crescimento da oferta pública o governo decidiu que quem venda ao Estado não paga mais-valias. A ideia é boa e já há autarquias a comprarem empreendimentos privados. Torna o negócio mais interessante para quem tenha de escolher a quem vende. Mas pode vir a dispersar propriedade do Estado ou das autarquias, se for feito sem escala, tornando a gestão do parque público muito difícil.
Mais casas privadas
O grande argumento que se tem ouvido contra qualquer política pública ou “intervencionista” é o de que houve uma grande quebra na construção. É natural que depois de décadas na cauda da reabilitação, isso tenha acontecido. Nas cidades consolidadas, onde a crise é mais aguda, foi para aí que as coisas se viraram, com ajuda do turismo. Somos, no entanto, o país com maior sotck de casas por 100 mil habitantes. Dirão: as casas não estão onde são precisas. Onde são precisas o espaço não é infinito e quanto mais escasseia mais cara será a oferta. Não será para a classe média e é improvável que tenha grande efeito nos preços para ela praticados.
Para facilitar a construção o governo decidiu facilitar o licenciamento, através de uma medida que pode levar ao licenciamento tácito. Estando certo o objetivo de aligeirar a burocracia (podiam fazer o mesmo com a contratação pública), devemos ponderar esta decisão depois do que aconteceu na Turquia. A melhor forma de resolver a incapacidade do Estado cumprir a sua função não é acabar com essa função.
Estando certo o objetivo de aligeirar a burocracia, devemos ponderar se a melhor forma de a resolver a incapacidade de o Estado cumprir a sua função é acabar com essa função, convidando ao licenciamento tácito.
Depois há o “intervencionismo" que leva a direita a fazer anúncios apocalíticos. Quem não se lembra do impacto avassalador que ia ter o “imposto Mortágua” e ele aí está, tendo como único efeito arrecadar dinheiro para a sustentabilidade da segurança social, ou do desastre que vinha com as “taxas e taxinhas” para o turismo? É de novo este "intervencionismo" que irá impor, para travar a especulação, limites de preços para novos contratos, impedindo os despejos sucessivos para acompanhar a subida absurda dos preços, com substituição rapidíssima da população das cidades. Para quem venha com a conversa que transforma a mais clássica das medidas social-democratas (ou menos do que isso) na ocupação do Palácio de Inverno, saiba que 13 dos 27 países europeus da União Europeia fazem controlo de rendas. É um bem essencial, nada mais natural. Só no delírio neoliberal em que vivemos é que deixou de o ser.
13 dos 27 países europeus da União Europeia fazem controlo de rendas. É um bem essencial, nada mais natural. Só no delírio neoliberal em que vivemos é que deixou de o ser.
O “perigo soviético” que já existia
Claro que há o risco de, não podendo aumentar as rendas ao ritmo alucinante a que assistimos, haver proprietários que prefiram tirar as casas do mercado, deixando-as vazias. É por isso que esta medida se relaciona com a obrigação de pôr no mercado de arrendamento casas devolutas. Ou os próprios o fazem ou, se o recusarem, o Estado faz por eles, cobrando e dando-lhes as rendas de casa. Descobri que o Estado valorizar um ativo privado oferecendo aos seus proprietários uma renda que não receberiam é socialismo. Mas vou lá noutro texto.
Para quem rasga as vestes contra tal afronta ao direto de propriedade, é bom esclarecer algumas coisas. A primeira é que a propriedade não é um direito sagrado. Está tão limitado como todos os outros direitos. Ficar com uma casa vazia, para ser valorizada, numa cidade onde haja grande pressão no mercado de habitação é comparável ao açambarcamento. As casas têm uma função social e de mercado. Cabe ao Estado regulador garantir que as duas se cruzam. Quem queira transformar casas onde elas faltam num ativo financeiro vazio não pode fazê-lo, porque o seu interesse causa um dano desproporcionado ao interesse comum. Isto dantes era mais ou menos pacífico.
Como escreveu Tiago Mota Saraiva, não estamos a falar de casas de segunda habitação, de férias ou de emigrantes. São casas sem vestígios de habitalidade, sem contratos de luz e água, como está na lei. O princípio em debate, já aceite como constitucional, é o que existe nas obras coercivas
Paulo Portas e o resto da direita tentaram lançar uma campanha de medo, "num país de proprietários". E este é o segundo esclarecimento: não estamos a falar de casas de segunda habitação, de férias ou de emigrantes. Uma casa devoluta, conceito sólido na lei pelo menos desde 2006, é uma casa sem “contratos em vigor com empresas de telecomunicações, de fornecimento de água, gás e eletricidade” e sem "faturação relativa a consumo de água, gás, eletrecidade e telecomunicações”. É uma casa sem vestígio de habitalidade, vazia, que ninguém usa ou pode usar, por um tempo longo. Muitas vezes à espera de partilhas sem que isso tenha custos para ninguém, outas à espera de valorização financeira, sem cumprir uma função que a lei já lhe dá, mesmo sendo privada.
O choque é sonso. Na prática, esta medida já existe, de outra forma. As obras coercivas são isto mesmo: se o proprietário não fizer obras o Estado tem direito a tomar posse da casa e a fazê-las por ele, pondo depois a casa em arrendamento e cobrando a renda até as obras estarem pagas. Não houve este escândalo em defesa da propriedade como direito sagrado quando foi aprovado. Não pela diferença entre as medidas, já que o princípio supostamente violado é o mesmo. Mas porque o ambiente político mudou desde então.
Asssociações de proprietários e partidos da direita avançaram com o argumento de sempre: é inconstitucional. Mas o princípio constitucional da função social da propriedade foi reafirmado quando o Tribunal Constitucional “decidiu por unanimidade que não era inconstitucional a possibilidade de a Administração impor a venda forçada de imóveis não reabilitados nem conservados pelos seus proprietários”, como lembra João Miranda, professor da Faculdade de Direito da Universidade de. Lisboa. Venda forçada, não arrendamento.
A única coisa que que ponho em causa nesta medida é a capacidade de a impor. Se for a mesma que existiu nas obras coercivas, será coisa que alimenta mais polémicas do que soluções. Quanto à acusação de inconstitucionalidade, o princípio já está na Lei de Bases da Habitação, que não foi considerada inconstitucional. E não só.
Não merece igual escândalo a proposta do Estado usar o seu poder para cobrar rendas em atraso, protegendo os direitos dos proprietários e dando-lhes segurança. Aí, o intervencionismo passa a ser ótimo.
Curiosamente, não merece igual escândalo a proposta (que concordo) do Estado passar a poder ser intermediário na resolução da cobrança de rendas em caso de atraso, pagando-as aos senhorios, tratando da execução fiscal quando isso for possível ou da renegociação do pagamento quando for necessário, protegendo assim os direitos dos proprietários e dando-lhes segurança. Também é o Estado a fazer a vez do proprietário, mas desta vez para o ajudar, usando instrumentos que estão vedados ao privado. Aí, o intervencionismo passa a ser ótimo.
Alojamento local: as políticas movem-se
Há vários benefícios fiscais ao arrendamento que dependem da duração das rendas. Está certo. Já o Estado subalugar casas, que é teoricamente uma excelente ideia, experimentou-se em Lisboa e foi um fiasco. Por isso é que a tentativa e erro interessa aqui e custa-me perceber porque se insiste numa ideia que na tentativa que foi feita falhou. Talvez exista na proposta alguma diferença em relação ao que foi feito na capital que me tenha escapado. Até porque o autarca que a implementou esteve envolvido no desenho deste pacote de medidas.
Já foi tentado, em Lisboa, o Estado subalugar casas e foi um fiasco. Por isso é que a tentativa e erro interessa e custa-me perceber porque se insiste numa ideia que na tentativa que foi feita e falhou.
Por fim, o governo acaba com os “vistos gold” (continuará a dar autorizações de residência para investimento externo, incluindo o imobiliário por via dos fundos), que já tinham um impacto marginal nas grandes cidades, mas não toca nos nómadas digitais e nos benefícios fiscais para não residentes. Onde intervém mesmo é no Alojamento Local, que corresponde a cem mil casas no país (os “vistos gold” são dez vezes menos) e que transformam Lisboa na capital com mais alojamentos locais por cem mil habitantes. Congela as coisas como estão e define 2030 como ano de reavaliação.
Os representantes do “setor” fizeram apelos lancinantes, não percebendo que o AL não nasceu para ser um “setor” que poderia canibalizar a função habitacional das cidades, mas como complemento de rendimento das famílias. Nisto, de novo, mais do que princípios gerais, o Estado tem de ter critérios de eficácia. O AL terá sido útil para reabilitar a cidade e quem participou nele não deixou de ter retorno com o investimento. Se se torna um eucalipto, mudam-se políticas. O que começou como uma forma de compor rendimentos da classe média afetada pela crise durante a troika rapidamente tomou conta de Lisboa e Porto. E não podemos ignorar que há estudos sobre o seu efeito no mercado imobiliário.
O AL foi útil para reabilitar e quem participou nele não deixou de ter enorme retorno. Se se torna um eucalipto, mudam-se políticas. As casas vendidas nestas zonas em que a CML suspendeu novos AL os preços recuaram 9%. Enquanto isso, no no resto da cidade, o valor das casas cresceu mais 10%.
Depois da Câmara de Lisboa ter decretado a suspensão de novos alojamentos locais no centro histórico, um estudo da Fundação Francisco Manuel dos Santos mostrou como o número de casas vendidas nestas zonas caiu 20% e os preços recuaram 9%. Enquanto isso, no no resto da cidade, o valor das casas cresceu mais 10%.
Quanto à decisão de que quem transferir a o AL para habitação não pagará IRS desse rendimento, levanta-me duas dúvidas: ser injusto para quem decidiu nunca pôr as suas casas em Alojamento Local e não ter garantias que essa casa não será alugada por dois mil euros a um nómada digital com a vantagem concorrencial em relação aos demais de não pagar impostos por isso.
O mercado existe e não faz milagres
Prevejo, nas próximas semanas, apaixonados debates ideológicos sobre este pacote. Quem acha que ele é radical anda distraído em relação ao que se está a fazer por essa Europa fora, onde nem os liberais vivem nos contos de fada onde os nossos habitam. O risco é, pelo contrário, ter feito um esforço tão grande em ser equilibrado que não funciona.
Valem pouco os contributos de quem acha que o mercado resolve o que não está a resolver em lado algum ou acha que em nome de um dogma podemos criar o caos social e implodir a nossa economia, transformando as áreas metropolitanas (e não só) em enormes estalagens de onde fogem todos os jovens qualificados por não receberem suficiente para aqui viverem e onde até os trabalhadores da estalagem são impossíveis de contratar. Mas também valem pouco os contributos de quem finge que o mercado não existe e que não reage às medidas que se tomam só porque não gostamos dele.
Valem pouco os contributos de quem acha que o mercado resolve o que não está a resolver em lado algum ou acha que em nome de um dogma podemos criar o caos social e implodir a nossa economia e os contributos de quem finge que o mercado não existe e não reage às medidas só porque não gostamos dele.
Com estas medidas, sendo pensadas para responder no curto e médio prazo a uma profunda crise habitacional e para, pelo menos, estancar a galopada dos preços, não se pode cair no erro de achar que o Estado pode transferir para os privados o que tem de ser uma responsabilidade sua. Sim, há uma responsabilidade social na habitação que, como a lei define, não exclui os privados. Sim, a propriedade privada não é um direito irrestrito e absoluto. Mas até para ter autoridade moral para o regular e defender o bem comum, governo e autarquias têm de assegurar a existência de um parque público de habitação como é sua competência. E é aí que tem falhado nas últimas duas décadas.
Precisamos de mais, muito mais, do que as 6800 casas novas construídas com recurso ao financiamento do PRR. Se na viragem do século conseguimos construir 45 mil casas para erradicar as barracas - mesmo que muito longe das melhores condições arquitetonicas, de construção e até sociais – não nos podemos contentar com uma pequena fração desse esforço.
Há uma responsabilidade social na habitação e a propriedade privada não é direito irrestrito e absoluto, mas para ter autoridade moral para o regular e defender o bem comum, governo e autarquias têm de assegurar a existência de um parque público de habitação. Têm falhado nas últimas duas décadas.
Preocupa-me, neste momento, saber se as medidas funcionam. Por via do Estado, do mercado, de benefícios e castigos fiscais, com mais ou menos intervencionismo. E preocupa-me a execução. Quantos anúncios fez António Costa nos últimos anos, em relação à habitação? Quantos se confirmaram? Porque será diferente agora? Este é o debate que interessa a quem desespera por casa. Já quem chama “comunista” ao primeiro-ministro por causa desse pacote nada tem a acrescentar a este debate. Nem à política em geral.