Ninguém civicamente sério pode ter celebrado a notícia de que a Câmara Municipal de Lisboa expôs, ao longo de uma década, centenas de ativistas às embaixadas dos seus países de origem. É um erro, para não dizer uma desonestidade, tratar esta questão como somente administrativa ou local.
Se a autarquia enviou dados pessoais em 52 ocasiões desde o ano de 2018, e a prática esteve em vigor desde 2011, significa que o número de dissidentes expostos pelo município ultrapassa largamente qualquer hipótese de que nenhum deles tenha sofrido consequências com o sucedido. É evidente que sofreram, e é evidente que essa é uma responsabilidade institucional da Câmara de Lisboa e, do ponto de vista democrático, do nosso país e de quem atualmente o governa.
Internamente, todos entendemos que não é um funcionário com 33 anos de serviço que merece ser bode expiatório de um erro que, segundo dizem, era do conhecimento do gabinete do presidente de Câmara, mas não do próprio. É, aliás, o regulamento geral de proteção de dados que o institui: quando a proteção de dados é violada, a responsabilidade é da mais alta autoridade da instituição em que esta ocorreu. Neste caso, o presidente da Câmara.
Não podemos, então, enquanto democracia europeia, transformar uma clara violação de direitos num assunto de campanha eleitoral. Isso é o que os incumbentes pretendem, de modo a desvalorizá-la, tentando abafar as suas responsabilidades políticas e fugindo ao escrutínio democrático. Trata-se de algo que ultrapassa a dimensão partidária, como a carta do socialista López Aguilar, presidente da Comissão de Liberdades Cívicas no Parlamento Europeu, deixou claro. Se, enquanto democratas, convertêssemos uma violação da lei nacional, europeia e internacional num fait divers administrativo, o que diria isso de nós?
Aqueles que o pretendem fazer, menosprezando o caso, vêm afirmando que o presidente da Câmara de Lisboa nada tem a ver, no que a convicções diz respeito, com Vladimir Putin. Ninguém duvida. Mas o ponto não é esse. O ponto não é a suposta proximidade da governação lisboeta à Rússia.
O ponto é aquilo que nos separa, por sermos democratas, de autocracias como a de Moscovo. O ponto é aquilo que nos aproxima, por sermos democratas, àqueles que protestam contra Moscovo. O ponto é que os seus direitos foram ignorados e que a lei foi violada. E, numa democracia, isso não pode passar em branco.