Opinião

Julião Sarmento: a Obra e o Mundo

O Contexto

Nos anos iniciais de 1970 Portugal estava ainda isolado do mundo contemporâneo, situação agravada pela questão colonial. Apesar da intervenção mecenática da Fundação Gulbenkian desde os primeiros anos de 1960 e do desenvolvimento de um mercado de arte sustentado na abertura económica do marcelismo à Europa democrática, Portugal era também culturalmente isolado (e, em especial, artisticamente isolado). Parte dos seus artistas mais activos vivia fora do país e muitos dos artistas do interior realizavam visitas regulares ao estrangeiro, beneficiando exactamente das bolsas da Gulbenkian. Sustentados por um mercado excepcional e inflaccionado, que a Revolução de 1974 fez desabar os artistas emigrados faziam poucos esforços para se integrar nos contextos conjunturais em que viviam, e o seu regresso a Portugal (entre 1974 e início da década de 80) afastou-os da história mundial da arte e dos mercados internacionais.

Nos finais anos de 1960 e nascente década seguinte outros fios começavam a tecer a mesma história nacional: uma geração de pendor anglo-saxónico, fascinada pela nova conjuntura cultural (da música e da arte) dos dois lados do Atlântico desviava-se da longa tradição francófila e francófona despertando para linguagens, gostos e tendências não maioritárias nem assimiladas no contexto nacional.

É a esta geração, beneficiou da democratização do país e da conjuntura económica de expansão nos anos de 1980, que pertence Julião Sarmento; e é exactamente no cruzamento das novas realidades culturais e possibilidades materiais que se situa a estratégia de internacionalização da sua obra - que pôde já ser feita a partir de Portugal sem necessidade de emigrar; que alcançou um reconhecimento nacional e internacional a nível comercial (galerístico e coleccionista), público (eco crítico e social) e museológico (exposições nalguns dos mais destacados eventos e museus internacionais) de amplitude e continuidade incomparáveis.

Estar fisicamente presente nas solicitações criadas por estas realidades internacionais torna-se essencial para alimentar, adensar e manter uma rede de contactos. Julião Sarmento estará sempre na primeira linha desse processo e é mesmo o protagonista de muito do seu sucesso, conectando alguns dos nomes e eventos mais sonantes do “art world” (artistas, galeristas, coleccionadores, jornalistas e críticos; secções de arte e revistas de arte; galerias, festivais, feiras de arte e bienais; galerias, centros de arte, museus; inaugurações) à sua obra e carreira mas também à realidade nacional e à vida e às obras de outros artistas, das galerias que o apoiavam ou que da sua proximidade, obstinação e generosidade beneficiaram.

Podemos hoje, simultânea ou sucessivamente, encontrá-lo em galerias ou museus de Londres e Nova Iorque, de Madrid e de Turim ou na casa dos seus coleccionadores do Brasil, de Espanha, de Portugal, de Itália, da Alemanha numa espiral crescente de novos lugares e novos consumidores de novas imagens. Julião Sarmento integrou-se de pleno direito num mercado de ideias e de bens que passaram a circular a velocidades nunca imaginadas; e parte do meio artístico português conseguiu também, de certa forma, segui-lo. Mas esse esforço gigantesco, construído a partir de Portugal e individualmente por cada um dos protagonistas, foi apenas residual (e/ou incoerentemente) apoiado pelas políticas culturais do Estado, foi muito fragilmente apoiado pelo mecenato e coleccionado privados, nunca beneficiou de um mercado interno sólido ou de museus integrados em redes internacionais fortes. Isso conduziu a que, apenas marginalmente, consigamos, ainda hoje, integrar qualquer um dos vários sistemas da arte actual e revela o avesso de qualquer pretendido sucesso de reconhecimento internacional para a arte portuguesa.

A Obra

A obra de Sarmento alimenta-se da sua inesgotável energia individual e história privada, de certos episódios históricos culturalmente mediados e capazes de desencadear ou absorver a energia captada numa infinidade de outros autores. À obra de Sarmento nada do que achou tecnicamente integrável numa linguagem criativa (artística) lhe foi estranho: pintura e desenho, serigrafia e gravura, performance e instalação espacial, escultura e som, texto, fotografia e imagem em movimento…; e nada do que podia, subjectiva ou culturalmente, ser usado como matéria da sua obra lhe foi estranho também: literatura e filosofia, cinema e dança, música e história da arte…

Olhemos o Sarmento de agora, o que desenvolveu, desde o final dos anos de 1990 (na fase em que podemos ver definido o seu estilo) uma longa teoria de imagens que na pintura e no desenho se constituíram como figuras lineares e contínuas inscritas sobre grandes fundo “brancos” - mas que, também na modelagem escultórica, no vídeo e nos outros meios de expressão que usou, deu a ver de modo isolado (com as referências exteriores ausentes ou indicadas de modo críptico), momentos de uma acção interrompida, suspensa ou paralisada no tempo, como um still fotográfico. Tais imagens deixou-as Sarmento sempre disponíveis para integrar narrativas abertas, ou seja, dependentes da experiência pessoal (subjectiva) de quem as vê.

Ele desencadeia assim um permanente processo de deslocação: a insatisfação do Eu contemporâneo, introduzida pelo romantismo, resultou na sua fragmentação, na sua desmultiplicação, na busca da impossível identificação com um Outro, conduziu à exasperação que alimenta também a pesquisa (do corpo, do sexo, do tempo, da pele, da palavra, da ficção para-narrativa) na sua obra. Nesse sentido, Sarmento é testemunho do tempo inquieto da humanidade actual que a contemporaneidade conduziu a um limiar crítico.

A afirmação sumária e fragmentar dos corpos, aproximando-se da sinalética de comunicação gráfica, significa que o culminar do longo processo de observação do real que o Renascimento instaurou termina numa negação (ou ultrapassagem) dessa mesma observação. Mas o sentimento de esvaziamento que daí poderia resultar é falso: o processo de Sarmento não é o da perfuração de todas as camadas da subjectividade até alcançar um núcleo obscuro, o núcleo onde, de modo instável, insatisfeito, exasperado, se instala, o núcleo do (seu) desejo.

Nas obras de Julião Sarmento encontramos ou supomos ver, sempre, imagens de mulheres. O masculino sempre foi pensado em função da representação do feminino e a representação do feminino pensada em função do desejo masculino. Esta orientação instaura uma violência simbólica que não resulta como um programa mas como uma inquietação erótica que a fragmentação dos corpos e a negação da sua identidade testemunham.

Sarmento escolhe de modo particular certas partes do corpo, fragmentos significativos de corpos. Trata-se de representar para olhar e de olhar para representar. Não são partes sem acção (partes mortas de um corpo, dele realmente separadas) mas partes em acção (gestos, poses, ou seja, movimentos). Sarmento não olha o corpo (decapitado ou decepado) para representar a ruína violenta da vida nem estuda separadamente os fragmentos em acção para depois os reconstituir.

Cada fragmento tem uma vibração própria, uma vida. Sarmento escolhe e fixa (no olhar voyerista e na representação escópica), esses fragmentos em acção, fetichiza-os, objectifica-os, reifica-os, separando-os do conjunto a que pertencem sem intenção de alguma vez com eles re-constituir um corpo ou recuperar um corpo unificado.

A violência que podemos achar incorporada neste processo resulta, afinal, de uma incompletude (programada desde início do processo): insistir no anonimato de corpos sem traços físicos particulares interagindo com elementos de cena elementares e eles mesmo fragmentares (vestidos, cadeiras, bancos, mesas, raros objectos como facas, baldes).

Tudo isto, para que fiquemos concentrados nos gestos e jogos coreográficos; tudo como se olhássemos (com estatuto de espectadores), em pedaços de corpos salvos da ruína do tempo, o registo de quotidianos ritualizados, performances capazes de funcionar como modelos do comportamento abstracto de uma humanidade dual. É uma operação de análise que deseja também operar uma síntese.

João Pinharanda é Adido cultural na Embaixada de Portugal em França e director do Camões - Centro cultural português em Paris

O autor partiu de dois textos recente escritos sobre o artista: um artigo integrado na recolha de textos “Julião Sarmento: o desejo, a necessidade, a eficácia e a inviabilidade da viagem na arte contemporânea” in Fragmentos da Viagem na Obra de Julião Sarmento, coord de Maria João Castro, Lisboa, 2020 e no texto de catálogo para a exposição, A linha que fecha também abre, no MNAA, 2019, que comissariei.

O autor não segue o Acordo Ortográfico de 1990