Opinião

Entre um “papão” e a justeza de um país fraterno

A turbulência noticiosa e opinativa nacional desta semana na comunicação social, a propósito dos resultados da eleição para o Presidente da República, votou ao esquecimento – naturalmente involuntário – o Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto, proclamado há 15 anos pela Assembleia Geral da ONU para não se quedar omissa a libertação do campo de concentração e extermínio nazi de Auschwitz-Birkenau, a 27 de janeiro de 1945. Unindo-se a esta memória, o Centro Europeu de Informação Europeia Jacques Delors (Eurocid), no seu sítio de internet, sublinhou “a necessidade de combater o anti-semitismo, o racismo e quaisquer outras formas de intolerância que possam levar à violência”, enquanto a comissária do Programa Nacional Nunca Esquecer – Em Torno da Memória do Holocausto, Marta Santos Pais, acentuou a importância de “jamais esquecer a oportunidade e responsabilidade que todos temos de impedir que a apatia vingue”.

Na edição do passado dia 27 do PÚBLICO, Marta Santos Pais recordava ser missão do Programa Nacional Nunca Mais Esquecer promover “o ensino e a formação, a investigação e a sensibilização para manter viva a memória do Holocausto e evitar a sua repetição”, concretamente em organizações cívicas, incluindo “escolas e universidades, comunidades e instituições, para que as gerações futuras possam compreender as causas e reflectir as suas consequências”. Recordar este itinerário programático – iniciado em 2010, por resolução da Assembleia da República – ganha maior oportunidade neste momento em que, de um modo inusitado, nos jornais, rádios e televisões têm sido filtrados os efeitos a breve prazo, tanto no horizonte político-partidário como no tecido social do país, das ondas de choque provocadas pelo voto de quem se deixou abraçar pelo projeto de “um líder mal-educado”, assim certeiramente classificado por Henrique Monteiro, no texto de opinião “A promoção dos extremos”, publicado neste semanário, exatamente no dia 27.

Terá razão Marta Santos Pais quando se refere ao perigo de persistência de uma “apatia” que poderá conduzir à ignorância dos “riscos crescentes de intolerância, incitamento ao ódio e à violência”, quando precisamente estes “têm vindo a ganhar espaço, reforçando o caudal de vítimas de discriminação, xenofobia e actos antissemitas”?

Recorde-se a noite da eleição do Presidente da República. Perante o gáudio insano dos seus apoiantes, o “líder mal-educado” profetizou que “a IV República está cada vez mais perto”, até porque, acentuou, estará para breve “uma avalanche”, como referiu o jornalista Hélder Gomes neste semanário numa reportagem. Que avalanche? Da inconsciência de discursos premonitórios de “uma nova reconquista”, tornada mercadoria para manipular desilusões ou até… a incompreensão das tantas explicações incógnitas que, nos debates da campanha eleitoral, os candidatos se deixaram envolver?

Já não é tempo para interpretações do sentido de voto. Estas foram feitas e refeitas por especialistas diversos e políticos de todos os quadrantes, e até mesmo através de reportagens juntos dos eleitores, na busca da sua consistência.

O que parece oportuno avaliar, com serenidade e parcimónia dedutiva, é se nesta campanha eleitoral foi feito o trabalho de casa: qual é o exercício do Presidente da República? Ou, se quisermos, poder-se-á considerar uma outra interrogativa mais lhana: para que nos serve ter um Presidente da República? Foi a ausência destes esclarecimentos, do aprofundamento destas questões, tão maioritariamente incompreensíveis, que o “líder mal-educado” agradeceu. Foi pelas imprecisões, pela inexistência de uma clareza pedagógica e, ainda, pela vozearia de diálogos, intercalando temáticas tão díspares e desordenadamente discutidas, que o líder “declaradamente antissistema” apreciou entremear-se… Isto concedeu-lhe palco, oportunidade para divergir sem fundamentação, atacar sem critério e, sobretudo, embrulhar a sua retórica de banha-da-cobra.

Recuperando o apelo de Marta Santos Pais – “todos temos de impedir que a apatia vingue e possa encontrar forma de permitir a barbárie uma vez mais” –, não é possível esquecer que o candidato “mal-educado” garantiu, do alto dos seus 11 e tal por cento, ter recebido “de toda a Europa” mensagens de apoio. Não se trata de dar importância ao “papão”, mas de propiciar um ambiente reflexivo, nos mais diversos átrios do nosso viver, sobre o valor humanista da Constituição da República na reconfiguração da sociedade e, assim, desvelar a sua relevância na organização e concretização das decisões políticas. E aqui, tem importância primordial, porque seu garante, a figura de Presidente da República.

Levar por diante um projeto idêntico, no desígnio, ao Programa Nacional Nunca Esquecer poderá ser uma escola da arte de bem conviver em democracia, e à qual a Assembleia da República deveria servir, simultaneamente, de âncora e de promotor. Talvez seja mais útil do que, na Casa da Democracia, entrevermos apartes quixotescos ou mesmo diabolizadores de um líder “declaradamente antissistema”, que sempre aproveitará para se alcandorar em teorias de descrédito deste sistema que garante, a cada uma e a cada um de nós, “os direitos fundamentais”.

Peregrinar um projeto assim sustentado, coadjuvaria uma compreensão mais ampla do valor ético da democracia constitucional, não permitindo a sabotagem de escolhos verbais que alardeiam contra incógnitos “manipuladores dos eleitores”… Assim, a canibalização da Constituição não encontraria nichos de ovulação para exércitos populares e patrióticos, para pregões de ódio contra quem não é desta terra ou se alimenta com os nossos impostos. Um projeto sustentado na ação legitimadora do Presidente da República – por não ser o corta-fitas, o doador de condecorações, nem o visitante ocasional em momentos trágicos –, conduziria ao apelo para uma intervenção de cidadania atuante, consciente que ao Presidente da República cabe o dever de estar atento à constitucionalidade das “normas constantes na lei”, assim como das “normas jurídicas”. E por aqui se edificaria a consciência de que a nenhum cidadão, et pour cause a nenhum deputado à Assembleia da República, como a nenhum candidato à Presidência da República seria permitido instituir ou pertencer a associações militarizadas, organizações racistas ou que “perfilhem a ideologia fascista”, como inequivocamente estabelece o artigo 46º da Magna Carta, sobre a defesa a liberdade de associação.

Não se alimente o “papão”... Cumprida a eleição de um cidadão para a Presidência da República, o tempo é agora de praxis, de ser coincidente com o que jurou defender e fazer cumprir – particularmente, de cuidar da execução dos “princípios basilares da democracia”, cujo objetivo é “a construção de um país mais livre, mais justo e mais fraterno”, como sustenta o preâmbulo da Constituição da República Portuguesa.