“Nesta semana (25 de janeiro), as estatísticas desceram tão baixo que, após a consulta de comissão médica, a Prefeitura anunciou que a epidemia podia considerar-se vencida. O comunicado acrescentava, é verdade, que num espírito de prudência, as portas da cidade ficariam fechadas por mais duas semanas e medidas profiláticas mantidas por mais um mês. Durante este período, ao menor sinal que o perigo podia recomeçar, o status quo devia ser mantido e as medidas prolongadas. Toda a gente esteve de acordo para considerar estas adendas como cláusula de estilo e na noite de 25 de janeiro uma alegre agitação encheu a cidade. (...) Nas ruas iluminadas, sob um céu frio e puro, os nossos concidadãos espalharam-se então em grupos ruidosos e risonhos.”
Este excerto do livro “A Peste”, de Albert Camus, escrito em 1947, e que relata um comunicado das autoridades anunciando o fim da pandemia, põe termo a dez meses de isolamento de uma cidade assolada pela doença. Dá-se a coincidência desta obra retratar uma pandemia que ocorre precisamente no mesmo período de tempo que a pandemia do covid-19 tomou conta do mundo. Setenta anos depois, a história deste romance repete-se, hoje com outros protagonistas e de forma bem distante da ficção de outrora.
Deu-se também a coincidência de ler esta extraordinária obra no final do ano, e da Peste de Camus revelar que mais de meio século depois, o tempo pouco alterou a forma e conteúdo da gestão sanitária, social ou politica de uma crise desta natureza, nem tão pouco o impacto e o lastro que uma pandemia pode deixar no desequilíbrio emocional de quem por ela passou.
É certo, face ao cenário atual, que a 25 de janeiro as coincidências históricas deixarão de estar alinhadas, uma vez que estaremos - muito provavelmente - a comunicar os piores números da pandemia, ao invés da oficialização do seu tão desejado fim.
Marcelo Rebelo de Sousa admitia em novembro passado que a Comunicação foi um dos maiores desafios desta pandemia, reconhecendo “erros, contradições e ziguezagues” ao informar os portugueses em diferentes momentos críticos. Dizem as regras, que o resultado de uma comunicação eficaz é sempre da responsabilidade do seu emissor, e não da deficiente compreensão de quem escuta, logo é mais importante a mensagem recebida do que a intenção da mensagem enviada.
Em tempos de crise, a comunicação é a nossa bussola, e enquanto cidadãos, precisamos de confiar na orientação de quem está no “comando” das nossas vidas. Mas os “erros, contradições e ziguezagues”, deixaram-nos sem direção, e assim parece termos perdido o norte.
É um problema de Comunicação? Não. É um problema de Exceção.
Os portugueses seguiram o caminho que nos traçaram. Ouvimos com toda a atenção o momento que nos disseram para não usar máscara e para usar máscara. Para ficarmos em casa e para voltarmos para a rua. Para irmos de Natal, mas recolher na chegada do novo ano. Chegados aqui, estamos de novo confinados. Ou não. Porque o confinamento anunciado nada tem a ver com o de março. O confinamento anunciado tem tantas exceções, que vamos voltar a repetir os erros do passado e continuar a perpetuar uma pandemia, uma crise económica e social, uma crise humana.
Quem está nos “comandos” das nossas vidas, tem que de uma forma clara e corajosa dar-nos regras. Porque, como estamos todos a assistir, as exceções estão a custar-nos demasiadas vidas. Este não é o tempo dos alívios e equilíbrios de decisões políticas. Governo e oposição têm que se alinhar num objetivo único e urgente: controlar e pôr fim a uma pandemia. E enquanto assim não for, sim, continuaremos a ter um problema de comunicação, porque a mensagem que nos estão a fazer chegar não traz na sua essência o que é realmente necessário fazer para controlar o descontrolo.
O vírus é desconhecido, mas a história deixa-nos ensinamentos que devem ser valorizados. As pandemias que assolaram o mundo nunca se resolveram com exceções. Resolveram- se com a aplicação de regras inequívocas na defesa sanitária, no controlo de contágios e nos comportamentos de risco, com isolamento de cidades inteiras durante muitos meses. Foi necessário e difícil? Sim. Mas foi o que a realidade impôs, mesmo em muitos regimes democráticos.
Porque observam os asiáticos incrédulos ao desamparo e impotência de uma Europa à mercê do vírus e a braços com uma terceira onda de contágios? Que a China tenha conseguido conter a pandemia, pode-se explicar em parte pela sua vigilância de regime que no Ocidente seria inconcebível e naturalmente indesejável, mas a Coreia do Sul e o Japão são democracias. É verdade de que o rastreio de contactos são feitos recorrendo a tecnologia bastante avançada, mas a contenção da pandemia na Ásia deve-se sobretudo ao civismo de uma ação coletiva para resolver uma crise pandémica, onde as regras definidas sem exceções são acatadas voluntariamente.
É incontestável que o liberalismo ocidental não pode impor a vigilância individual do tipo chinês. O vírus não pode contaminar os valores democráticos. Mas a pandemia também não pode ser uma fragilidade que coloque em causa a confiança nos Estados e naqueles que nos lideram quando mais precisamos deles.
A Nova Zelândia é um país liberal que por duas vezes já controlou a pandemia. O êxito dos neozelandeses consiste também na mobilização do civismo na resposta às duras medidas implementadas. A primeira-ministra neozelandesa, Jacinda Ardern, falava orgulhosamente da sua “equipa de cinco milhões”. Esta paixão e apelo a “um todo” foi acolhido pela população. Pelo contrário, a gestão de Trump baseada no seu egocentrismo, na defesa do seu lugar e na sua manifestação de poder, resultou no desastre norte americano que conhecemos. A sua política desmembrou o sentido de coletivo e de nação.
Todos e cada um nós, à sua maneira, anseia por Liberdade. Mas em tempos de pandemia, a Liberdade de uns condiciona (e mata) a liberdade de outros. Porque chegados aqui, nem liberdade, nem segurança, nem confiança. Os valores que nos regem enquanto indivíduos e enquanto coletivo, estão, esses sim, confinados. Precisamos de ir além da comunicação de saúde e comunicação política. Precisamos da comunicação humana, porque é essa que motiva as pessoas para a ação e para a recuperação do que mais desejam. Precisamos de um “nós”.
Nos anos da peste não houve Natal. Cidades inteiras viveram meses com cercas sanitárias onde ninguém entrava ou saía. A coerência das decisões nunca foram populares e a consistência de comunicação, apesar de contestada, foi acolhida, compreendida e eficaz. E assim, em “25 de janeiro, uma alegre agitação encheu a cidade “(...)