Opinião

Do oriente ao ocaso: o que há em comum entre os cuidadores informais e o SEF?

No dia em que é anunciada a dispersão das funções do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) por outras forças policiais e a mudança de nome do serviço, o jornalista Mário Robalo interroga-se se está garantido o respeito pelos Direitos Humanos, "cujo sistemático desrespeito esteve na origem desta mudança". Quando foi o próprio presidente dos inspetores do SEF a denunciar, neste semanário, que às mãos das outras polícias os que entram no país teriam pior sorte, questiona-se a rapidez desta mudança, quando em questões tão vulnerabilizadas, como a situação dos cuidadores informais e os que eles tratam está desde há quase dois anos sem regulamentação governamental

Este não é um texto a preto e branco. A vida também o não é. E como o que se pretende é falar de vida, da existência de pessoas, do que lhes proporciona consolo ou desconsolo, torna-se naturalmente necessário construir um discurso policromático.

Com um intervalo de três dias, este ano, recebemos duas notícias de caracter bem diverso. Ou talvez não. Ambas nos levantam questões sobre o cuidado de pessoas, a necessidade de se saber olhar, e escutar, quem temos à frente, como gostaríamos que alguém o fizesse connosco.

No passado dia 8, ficámos a saber que o novo diretor do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) determinou a recolha de todas as armas não letais, como bastões, armas elétricas e sprays de gás pimenta, distribuídas pelos inspetores daquela Polícia. E até amanhã (dia 15) têm de ser entregues, com as respetivas recargas e acessórios, no armeiro central…

Entretanto, por via dos meandros da campanha eleitoral para a Presidência da República, na passada segunda-feira soubemos que os mais de um milhão de cuidadores informais do país ainda esperam, desde 2019, pela celeridade da regulação da lei que lhes confere este estatuto…

Que analogia é possível estabelecer entre estas duas notícias? Os seus protagonistas são pessoas responsabilizadas pelo acolhimento de seres humanos vulneráveis, ou pelo menos na maioria dos casos. Já lá vamos. Destes, os primeiros – excluindo os imigrantes com capacidade para pagar mais de 350 mil euros de modo a terem acesso ao «Espaço Shegen», que passam pelos polícias do SEF sobre uma passadeira vermelha e cujo número aumentou desde início da atual pandemia –, são habitualmente pessoas a desejar estabelecerem-se em lugar seguro. Longe de conflitos bélicos, de situações de incertezas e perigosidades diversas, como os perseguidos políticos (alguns dos nossos governantes do pós-25 de Abril conheceram o sossego de serem acolhidos em «países amigos»), os estigmatizados por religiões ou os que enfrentam nas suas terras a incapacidade de uma sobrevivência mínima (milhares de portugueses foram abraçados em França, quando fugiram da fome salazarenta, particularmente entre finais da década de 50 e a de 60, do século passado). Por seu turno, os segundos são pessoas depauperadas ou debilitadas por doenças diversas, na maior parte dos casos desconhecidas do exterior, de nós que andamos pelas ruas, quantas vezes a correr atrás do vento; são seres humanos que, na maioria dos casos, já perderam horizontes e amigos, ou talvez nunca os tenham conhecido…

Quanto aos protagonistas das referidas notícias, uns são o oriente, o lado luminoso dos dias dos vulneráveis de quem cuidam. São a refulgência de cada manhã transfigurada em alento, em transferência da cama para a janela, em paciência na hora das refeições e nos momentos agrazes, quer seja na mudança das fraldas ou nas deslocações ao hospital ou na complexidade de manter o equilíbrio no banho ou a vigia nas noites doídas… Basta escutar-se meia dúzia de cuidadores daqueles vulnerabilizados.

Dos outros protagonistas, membros dos quadros do SEF, não é possível senão descrever um quadro sombrio, e toldado de equimoses pelas próprias palavras (já esquecidas?) do presidente do Sindicato da Carreira de Investigação e Fiscalização do SEF, escritas neste semanário, na edição de 24 de dezembro passado. Aquele dirigente sindical e também inspetor do SEF, Acácio Pereira, a propósito da possibilidade, então ventilada, de aquela força policial ser extinta e os seus efetivos integrados numa das Polícias já existentes, escreveu o seguinte: «As forças para que se propõe transferir as competências do SEF, pouco, ou nada, percebem disto. E mesmo com a recente catadupa de denúncias, o SEF pede meças às outras polícias quanto ao respeito pelos direitos humanos. (…) E, infeliz mas seguramente, aumentaria a violência sobre cidadãos estrangeiros às mãos de outras forças policiais. (…) Não é por ser inspetor do SEF, é para não ter de ver a realidade dar-me razão».

Aqui, se não é legítimo tomar a árvore pela floresta, então os bastões usados pelos inspetores do SEF – como aquele que colheu a vida de um cidadão ucraniano em março passado, no aeroporto de Lisboa – sempre existem e não são desconhecidos da hierarquia, como quiseram fazer crer. É uma ordem do próprio diretor daquela força policial que o desdiz. Conhecida há poucos dias, a determinação vem dar visibilidade às palavras de Acácio Pereira. O que é gravíssimo. O próprio sindicalista reconhece inequivocamente que o SEF é uma agremiação perigosa: além de não desmentir «a recente catadupa de denúncias», Acácio Pereira dispara, sem pergaminhos de linguagem, duas asserções: os funcionários da Polícia onde ele exerce funções usam, sobre quem chega às fronteiras portuguesas, metodologias degradantes e desrespeitadores da dignidade humana; porém, alerta o inspetor: «há outras forças policiais» ainda mais violentas, até porque ele não quer «ver a realidade» conferir-lhe veracidade ao aviso que fez. Consciencioso, Acácio Pereira não quer ver o ocaso a adensar-se mais nas fronteiras. Por isso, reclama: não deixam os outros polícias tomar conta deste serviço! Até porque o inspetor do SEF sabe que, com aqueles, «aumentaria a violência» na receção que Portugal faz aos cidadãos estrangeiros.

Como é possível o Ministério Público não ter prestado atenção às afirmações daquele sindicalista, cuja garantia há que ter em conta dado ser ele também mester do ofício. Não é o Código Penal que exige punição com pena de prisão a quem tendo conhecimento de infrações criminais ou exerça função de prevenção ou guarda e vigilância de pessoa detida, particularmente discriminações de natureza de origem étnica ou nacional, ou violência? E mais: Acácio Pereira tem conhecimento de que o modus operandi da violação dos direitos humanos pelo SEF seria superado pelos membros de outras Polícias, caso a estrutura do SEF fosse nalguma delas integrado. E não haverá alguém da hierarquia do SEF que, ainda recordando o que lei impõe, ele não pode ignorar as situações concretas de que é conhecedor e, por isso, deve apresentar queixa?

O laxismo do Estado interpreta-se em momentos como este. Tudo ficou igual; todos ficaram inertes, incluindo o Ministro da Administração Interna e o Primeiro-ministro, perante as afirmações ingentes de um elemento destacado de uma força policial que, além de exercer funções sindicais garantidas pela democracia constitucional, tem apreciações fortes sobre a urgência de formação para os elementos do SEF e profundo conhecimento de uma atividade violenta por parte das restantes Polícias, conforme sustentou no texto opinativo já referido: «Uma escola específica para o SEF será o melhor antídoto para fenómenos de extremismo e de radicalização como os que se verificam noutras forças e serviços de segurança.»

Nem mais. Silêncio absoluto. Até porque, na altura, estávamos a caminho de assumir a presidência da União Europeia e se a premência da «bazuca» financeira não pode ser colocada em causa, em matéria de respeito pelos direitos humanos e a garantia das liberdades constitucionais, as coisas não têm corrido convenientemente, por forma a mostrar na fotografia de um continente que ainda pretende dar lições ao mundo, naquela área.

Transversal aos cuidadores informais é este laxismo. Anote-se no caderno de encargos sociais do Governo de António Costa – e a circunstância de uma pandemia galopante não pode servir de desculpa – a situação embaraçosa em que se encontram aqueles que rompem manhãs, após noturnos desabridos. Se uma mãe que passou mais de quatro décadas a cuidar de um filho, ou filha, não tem na idade de reforma uma pensão garantida; se um amigo não pode ser considerado cuidador informal de um doente a quem entregou horas a fio da sua vida – e há-os aí, bastantes, no mais completo silêncio –, como acontece com a legislação aprovada em 2019 que, apesar da promessa inscrita no seu articulado, não fez as devidas alterações no Código de Trabalho – no seu artigo 15º, está garantida a adequação das normas laborais ao estatuto do cuidador, e que deveria ter sido efetivada até ao passado dia 6.

Silêncio. Assim foi anos a fio com um SEF desorientado e sem formação social, humanista e de Direito Internacional. Assim será com os cuidadores informais, num desprezo vezes sem conta rejeitado como aconteceu em 2015, durante a campanha eleitoral para as legislativas. António Costa, depois de visitar, em Melgaço, a Unidade de Cuidados Continuados que, estando equipada, permanecia encerrada, considerou: «É um péssimo exemplo do abandono a que este Governo votou o sector da saúde».

Ninguém pode abrir as manhãs ou salvar as noites de outros. Mas faz sentido continuar, para além da presidência da União Europeia, mantermo-nos vigilantes? O tempo diz-nos que «debaixo do Sol, a injustiça ocupa o lugar do direito e a iniquidade ocupa o lugar da justiça», como acontecia no tempo de Qohelet (aquele que reúne), há mais de 2400 anos, que no seu livro sapiencial registou as «coisas vãs e fúteis» que ele observava na cidade de Jerusalém.