"Tem sido tão difícil preencher o fosso que separa a regulação de vida imposta naturalmente e as respostas que vamos inventando que a condição humana se assemelha, frequentemente, a uma tragédia e, talvez menos frequente, a uma comédia"
António Damásio in "A estranha ordem das coisas", Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2017
França continua a digerir, pela terceira semana consecutiva, uma inclemente violência resultante de confrontos entre manifestantes e a Polícia, a propósito de legislação sobre «segurança global», pela qual ficará proibida a possibilidade dos cidadãos, incluindo jornalistas, de «divulgar, denunciar ou investigar qualquer ato de violência policial», como já dava conta na edição do passado dia 4 deste semanário o jornalista Tiago Soares. Aprovada pela Assembleia Nacional, e agora à espera da decisão do Senado, a futura lei já provocou severas críticas, não só por parte de profissionais da comunicação social e de Organizações Não Governamentais, mas também por um conjunto de personalidades ligadas à academia e defensoras dos Direitos Humanos.
Por cá, neste pedaço de fronteira mais ocidental da Europa, com o país suspenso, na semana passada, pela demissão da responsável máxima do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) (e que acabou por acontecer no dia 9) por supostamente três agentes daquela corporação terem provocado a morte a um cidadão ucraniano, portador de um passaporte de turista válido, ficou ofuscada a notícia (do dia anterior à saída de Cristina Gatões do SEF) dada a conhecer pela jornalista Ana Dias Cordeiro, no PÚBLICO: há seis anos, em 2014, um general do Exército Português, numa visita a dez instruendos comandos hospitalizados em resultado de agressões por parte de instrutores, afirmou a um deles – com nariz partido e um tímpano furado – que aquele facto «não podia constar no relatório». E como refere na notícia, este não era caso único, mesmo antes da divulgação da morte de dois comandos e o internamento de outros sete, dois anos depois.
Esquecida parece já estar também a polémica à volta de uma diretiva da Procuradora-Geral da República, e já publicada em Diário da República, que coloca sob a sua alçada um regime de processos paralelos aos processos-crime que envolvam personalidades influentes ou dirigentes políticos, conforme relatou Rui Gustavo no Expresso, no dia 4 deste mês. «Na base desta diretiva está o efeito de ricochete do processo de Tancos», anotava o jornalista Rui Gustavo, recordando que os procuradores que conduziram aquela investigação pretenderam ouvir presencialmente o Presidente da República e o primeiro-ministro, os quais como sabemos fizeram declarações públicas substanciais sobre aquele trágico-cómico caso de polícia, do qual nunca certamente teremos dados concretos. Sobre a decisão da Procuradoria-Geral da República foram esboçadas convicções, emaranhadas e pouco firmes. E só o presidente dos Sindicato dos Magistrados, o procurador António Ventinhas, não se isentou de classificar a diretiva de Lucília Gago de porta aberta «à falta de transparência e à influência política nos processos». Ou seja, personalidades com influência na vida pública e detentores de cargos públicos estão isentados de colaborar com a Justiça.
E se no passado sábado ficámos a conhecer a decisão da direção da Polícia Judiciária em promover um seu inspetor, Rogério Bravo, atualmente investigado por ligações à Doyen Sports, no caso do Football Leaks, a 25 de novembro passado, ficámos a conhecer, pelo Tribunal da Relação de Lisboa, a confirmação das acusações (disciplinarmente sempre desmentidas) sobre oito elementos da Polícia de Segurança Pública por crimes de motivação racista e tortura contra jovens afrodescendentes.
Têm sido persistentes, ao longo da nossa permanência na União Europeia, as recomendações do Comité Europeu para a Prevenção da Tortura e das Penas ou Tratamento Desumanos ou Degradantes dirigidas ao Estado português. Parecem, porém, cair em saco roto, quando chegam às mãos dos ministros responsáveis. Aquela instituição do Conselho da Europa tem sistematicamente registado maus tratos sobre cidadãos, nas mais diversas circunstâncias, por parte da Polícia de Segurança Pública e da Guarda Nacional Republicana, bem como do corpo de guardas prisionais. Não são raras as notícias, mas escassas as condenações.
A nossa superação do «fosso que separa a regulação de vida imposta naturalmente e as respostas que vamos inventando» na resolução das problemáticas apresentam complexas dificuldades éticas. A reflexão de António Damásio não nos deixa no abismo. Porque ter «capacidade de inventar soluções é um privilégio imenso», a garantir a estabilidade do «fardo da liberdade». Mas se nos esquivarmos, poderemos vir a lamentar a presença dos inquietos por noites de cristal nos átrios do Estado. Souberam esperar pela hora em que as sociedades se fragilizaram precisamente para se entranharem. Menosprezá-los, considerando-os, em quase atitude angelical, de comediantes de uma comédia que não fazia sentido, é um engano. E este engano já deixa marcas. Não talvez ainda por mérito da sua arte, mas pela nossa falta de nobreza e de respeito pelos fundamentos da Democracia constitucional.
Vivemos num mundo que, apesar de muitas circunstâncias políticas, sociais e mesmo culturais o desmentirem, conhece uma Declaração Universal dos Direitos Humanos. E a criação da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço propiciou o despertar coletivo dos europeus para a urgência de modelos políticos capazes de «medidas concretas» promotoras, «antes de tudo», da solidariedade, como predizia o então ministro francês das Relações Exteriores, Robert Schuman, em 1950, ano anterior à assinatura do acordo constitutivo da associação de Estados que preparou o caminho para a atual União Europeia, à qual celebraremos 35 anos de pertença em janeiro próximo.
A ética da solidariedade evocada «antes de tudo» por Schuman, para que a Europa não tolerasse mais a tragédia, está de novo comprometida… Diante dos destroços que a epidemia espalhou desde março passado, corre-se o risco de fragmentar princípios em que se sustentava a adesão dos Estados à família europeia. Suprimir o Estado de Direito – o pluralismo partidário, aliado à garantia de independência dos tribunais e à democracia dos valores da liberdade de expressão e de reunião, e à institucionalização de forças armadas e polícias integradas em princípios de respeitadores dos Direitos Humanos – significa a desmobilização da ética programática de Schuman.
Permanece um silêncio institucional. E o Governo mostra mesmo reservas ao que considera alaridos, parecendo ter-se demitido de tomar em mãos um conjunto de ações divulgadoras eficazes e livres de constrangimentos, explicitamente publicitadas aos cidadãos que os elegeram, quando um fogo fátuo começa a colocar em causa atribuições e deveres relevantes de instituições como as Forças Armadas, as diversas Polícias e a Justiça, corporizada no Ministério Público.
É verificável a inexistência da chamada vontade política, desde as estruturas internas dos partidos aos sucessivos governos, em reconhecer a necessidade de todos, absolutamente todos os elementos das Forças Armadas, das Polícias e da Magistratura, conviverem em permanência com formação estruturante humanizadora, alicerçada em fundamentos académicos, sobre a correlação da convivência das sociedades com a emergência dos Direitos Humanos considerados nas suas vertentes plurais. E não apenas nos cursos de acesso e integração nas respetivas agremiações.
Os factos já sublinhados servem de apontamento sério sobre a situação, não podendo ser escamoteados com discursos argumentativos de que ainda só são, precisamente, apontamentos não representativos da natureza do quotidiano daquelas instituições. Tem razão António Damásio: as respostas que vamos produzindo podem traduzir-se, vezes demais, em tragédias. A verdade é que o «fardo da liberdade» tem de ser cuidado com a ética dos deveres e direitos cívicos, da liberdade de informar e ser informado, da urgência de mecanismos sociopolíticos de resguardo do direito de associação e participação em todos os sectores da vida pública…
Tudo isto não deveria surgir somente como uma panaceia, reconhecida na legislação do Estado, mas posteriormente postergada no exercício das funções ao serviço dos cidadãos. A propósito, permita-se ao desconhecido cidadão perguntar-se: quando um agente policial passa com o cassetete pelas costas de um detido na esquadra, não o fará sabendo-se respaldado pelos seus superiores? Se isto for negado formal e institucionalmente, é necessário indagar: por que são tantos os casos conhecidos?
A verdade é que o «fardo da liberdade» tem de ser cuidado com uma ética edificativa, dir-se-á mesmo inexpugnável aos atrevimentos de caráter negacionista de uma cultura comunitária de igualdade, nos interesses e nos deveres. É por aqui que começam a ferventar os sinais da aleatória exaltação do grupo, da honra dos que se cuidam estar além da mediocridade dos plebeus, porque exercendo autoridade se consideram a coberto do exame crítico.
Pela sua significação institucional e a importância prática jurisdicial que assume, recorde-se o facto de a Procuradora-geral da República não ter ouvido antecipadamente todos os envolvidos numa decisão relevante do mister da Justiça. Em depoimento enviado a este semanário reagiu negando a condenação generalizada de ela querer controlar os juízes e esconder da opinião pública gente importante. Este desencontro exige a oportunidade de não se permitir esquecer que os Procuradores-gerais da República não exercem a sua função por direito próprio. A sua ação resulta e desenvolve-se a partir da sua escolha e nomeação por dois órgãos de soberania, o Presidente da República e o Governo, cuja ação emana constitucionalmente do plebiscito dos cidadãos.
Assiste-se a uma militância feita dentro de portas e para o interior das instituições. Esta orgânica não merece já a desculpabilização de herança do fascismo. A grande maioria dos dirigentes das corporações não conviveram ou não coabitaram tempo suficiente com o Estado Novo para dele extraírem princípios e modelos comportamentais. Como é possível que os sucessivos governos pós-25 de Abril recebam relatórios fidedignos de uma instituição da União Europeia sobre estabelecimentos prisionais severamente sobrelotados – celas com pouco mais de 30 metros quadrados a albergarem 10 reclusos, com casa de banho incorporada no mesmo espaço ou o confinamento de reclusos na cela durante 22 horas; como se aceita, quase meio século depois do desaparecimento do Estado Novo, a leviandade de um general das Forças Armadas garantir que os abusos à integridade física de um instruendo dos comandos, por parte dos seus superiores hierárquicos, ficará sem registo formal. Ou seja, sem investigação e consequências… O grave talvez não seja o oficial em causa ser capaz de atrevimento tão sórdido – o facto já foi testemunhado em processo judicial –, mas sim o facto de sucessivos Governos terem-se desobrigado de laborar institucionalmente no sentido de fundar, e fazer prevalecer, um direito democrático atuante.
As respostas comportam naturalmente riscos, dificuldades de afinação e integração de diversas realidades sociais que, abruptamente, alteram modelos de convivência governativa e de códigos de interação formal. Não convém, porém, esquecer que as crises sociais resultantes de uma administração pública da política cada vez mais refém de um sistema financeiro global rompem transversalmente os relacionamentos que o Estado estabelece com o cidadão.
A virtude está em saber iniciar um processo capaz de discorrer sobre o desmérito de castas políticas sempre confiantes no bom augúrio das suas conveniências particulares, de grupo ou de partido, divorciados do corpo orgânico da comunidade, e como estivessem garantidos pelos seus guardiões – Justiça e Polícias, incluídos – em poderes arbitrários acomodados. Uma obstinação instalada desde que o jovem Alexandre, da Macedónia, se ergueu, despótico, perante díspares civilizações, impondo-se a organizações políticas, a pensamentos filosóficos e a sistemas jurídicos, desde a Grécia ao Egito e até ao noroeste da Índia. Mas o preço a pagar por esta obsessão foi a humilhação executada pelos homens do seu próprio exército. Desvairados com o invisível daquilo que o seu imperador julgava existir além da cordilheira do Hindu Kush, debandaram. Havia perdido de forma inominável a pior batalha: o abandono dos seus.