Opinião

Ciência, Política e Ética: triangulação difícil

Vivemos tempos de uma dificuldade sem par. Precisamos, como nunca, da ciência. Somos, como sempre, dirigidos pela política. Mas não devemos prescindir nunca da ética, para nos dizer o que está moralmente certo. O médico e professor universitário José Fragata escreve sobre estas três questões, a propósito das recentes declarações políticas sobre o plano de vacinação contra a covid-19

Seria bem mais simples se a ciência, a política e a ética pudessem ser atendidas separadamente. Contudo, há decisões que, baseadas idealmente na ciência, nos são ditadas pela política e que deverão atender à ética. Uma conflitualidade frequente de precedências que nem sempre entendemos bem e que, por vezes, nos chocam mesmo. Foi o caso de declarações políticas recentes sobre as prioridades de vacinação.

As respostas que nos permitem lutar contra a pandemia, ainda que incompletas, terão de provir da ciência, sendo que à política competirá decidir, desejavelmente alicerçada na melhor evidência científica e enquadrada nos mais sólidos princípios da ética. Sacrificar a ciência à política é um caminho perigoso, mesmo quando justificado por uma ética de benfeitoria que se reclama de protetora dos mais idosos.

A investigação científica, sendo uma atividade social, será inerentemente política, mas esta inerência aplicar-se-á a decisões macro, como por exemplo a de alocar mais ou menos verbas à ciência. Coisa diferente será o uso do poder político para as decisões técnicas. É o que temos visto nestes últimos meses, quando os cientistas são pouco ouvidos, mesmo secundarizados, e quando as instituições de saúde de governo técnico se tornam agências políticas, levando a que a crise sanitária e a sua, melhor ou pior, performance entrem no jogo partidário. Será esta uma perigosa mistura, que tem prejudicado a efetividade das medidas e certamente dificultado a boa comunicação aos cidadãos.

A história está repleta de exemplos em que decisões políticas sobre a ciência e a saúde conduziram a tremendos erros: o ensaio Tuskegee sobre o tratamento da sífilis nos Estados Unidos, que discriminou deliberadamente os negros e sonegou os resultados da investigação aos cidadãos ou a decisão de Bush de cortar financiamento à investigação das células estaminais por “convicções pessoais profundas”. Felizmente as influências indevidas da política sobre a ciência têm sido travadas pela crescente normalização ética, através de comissões ou boards reguladores.

Esta narrativa vem a propósito da vacinação contra o vírus que provoca a pandemia, vacinação em que todos depositamos as maiores expectativas. Se a evidência científica sobre a eficácia da vacina não é ainda sustentada para todos os grupos etários, não lhe estando ainda assegurada a plena suficiência, é, contudo, certo que nenhum político assumirá ter de deixar alguém excluído do plano de vacinação. É aqui que entra a ética, essa ciência da moral por muitos citada, mas por poucos atendida, e pela qual, em termos absolutos, todos deverão ser vacinados.

Primeiro, os mais vulneráveis, seja na exposição ao vírus, seja no risco da doença. Mas haverá, seguramente, que fazer escolhas, se não pela quantidade, certamente pela falta de acesso em tempo. Neste caso, cabe à ciência apontar caminhos e sustentar o primado ético que deve prover, primeiro, aos mais vulneráveis e, acima de tudo, acautelar o bem da maioria. Este é o princípio da justiça distributiva que a ética bem conhece, que a ciência sustenta e que a política, se atendesse à ciência, deveria seguir mais. No interesse da maioria e para bem de Todos.