Diário da Peste,
20 de Maio
Um menino mal acabou de nascer e já sabe que é urgente lavar as mãos.
Enfermeiros foram de novo insultados e convidados a sair dos prédios onde moravam.
Uma mulher acelera na rua e diz que não tem medo, só pressa.
Um velho passa por dois rapazes e começa a insultá-los porque eles disseram que ele não devia sair de casa.
Passeio pela bela tradução de Dante feita pelo brasileiro Cristiano Martins - e vou depois ver o mar.
Shulan é a nova Wuhan. “Ninguém entra nem sai da região em quarentena”.
Tatuadores querem saber quando podem retomar a actividade – e eu imagino que os desenhos ou palavras a serem tatuados serão também controlados pelo Estado.
O que levas tatuado na tua pele deve ser primeiro analisado pelo Governo que está atento ao que fazes.
E também está atento à tua bela e tatuada pele, claro.
Imaginar uma comitiva perversa e excitada a controlar cada tatuagem humana nestes meses de alvoroço brusco da média da democracia normal.
Vocês é que não deviam ter saído da barriga da vossa mãe, disse o velho homem aos dois pequenos adolescentes.
Instruções são necessárias para pôr em funcionamento bebés que ainda não chegaram ao primeiro A do ABC.
Larissa envia-me do Brasil o livro “Sobrevivência dos vaga-lumes” de Georges Didi-Huberman.
Pasolini dizia que os vaga-lumes estavam a desaparecer em Itália.
Aniquilados pela noite fascista ou pelo excesso de holofotes, comenta Didi-Huberman.
Os vaga-lumes desapareceram no início dos anos 60, diz. “fenómeno fulminante e fulgurante”, Pasolini.
Três fortes palavras seguidas como se fossem uma única: fenómeno fulminante e fulgurante.
E desaparece a leve luz dos vaga-lumes porque há demasiados projectores.
Os projetores que “vêm dos estádios de futebol, dos palcos de televisão”, etc, comenta Didi-Huberman.
Esses “ferozes olhos mecânicos”, Pasolini, anulam a luz dos vaga-lumes.
Em França, 152 possíveis casos de doença de Kawasaki em crianças.
Na Alemanha, mais de 20.000 profissionais de saúde contraíram coronavírus.
Em 2020 há vaga-lumes no interior e nos campos.
Disso vou recebendo informações para este diário.
Informar sobre o número de vaga-lumes avistados por noite.
A tarefa rente ao solo e em pleno ar, em 2020.
Uma luz natural mínima emitida por um mínimo animal.
Essa luz mínima anuncia que a noite não é excessiva.
E também anuncia que os projectores artificiais de luz não ocuparam todo o metro quadrado do mundo.
A mulher que acelerava na rua diz agora que não tem pressa, mas sim medo.
Anuncia-se uma investigação sobre procedimentos, uma vacina e um medicamento.
Em poucas horas mais de cem vaga-lumes foram detectados na noite que existe longe das notícias.
Nem muito escuro, nem claridade a mais.
E 100 é por vezes o número que assinala uma forte resistência e um itinerário.
“Leva a luz e não olhes para trás”, diz o meu oráculo, Jardim de Morya. E eu obedeço.
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