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Opinião

Desastres naturais – José Cutileiro (1934-2020)

Decerto sabia-o: um dia iria ser o do seu próprio obituário. E, como é evidente, nas páginas do Expresso, onde durante vários anos rastreou mortes famosas. Outras não tão famosas assim, como a de uma arqueóloga americana, e polémica, com nome de atriz porno, Iris Cornelia Love, que foi tema do seu último “In Memoriam”, publicado no sábado passado. Na véspera da sua morte em Bruxelas, onde morava e se encontrava hospitalizado. Tinha 85 anos

José Pires Cutileiro nasceu em Évora em 1934, numa família ideologicamente compósita: o pai, José como ele, era um médico republicano e laico, anti-salazarista convicto (como o filho dirá, “não do PC, mas perto do PC”); a mãe, uma dona de casa oriunda de meios conservadores e católicos. Provavelmente por decisão paterna, o jovem Cutileiro não foi baptizado, facto menos raro do que se julga no Alentejo da altura, mas em todo o caso digno de realce e nota. Estas raízes marcarão certamente a escolha, anos depois, do tema da sua dissertação de doutoramento em Antropologia Social, um estudo sobre a importância da posse e da distribuição da terra pelos vários grupos sociais de uma freguesia alentejana, onde Cutileiro fez trabalho de campo em 1965 e 1967 e a que, por prudência académica, chamou Vila Velha. A tese seria defendida em 1968 na Universidade de Oxford, e publicada em 1971 na prestigiada Clarendon Press com o título A Portuguese Rural Society (e, entre nós, na Livraria Sá da Costa: Ricos e Pobres no Alentejo: uma sociedade rural portuguesa, 1977).

No entanto, e ao contrário do que sucedeu a muitos intelectuais portugueses da sua geração, o doutoramento em Inglaterra não foi o seu primeiro contacto com o estrangeiro nem equivaleu a um curso acelerado de cosmopolitismo para consumo doméstico. Uma parte significativa da sua adolescência tinha sido passada fora de portas, e bem longe: na Suíça, na Índia, no Afeganistão. Devido às suas simpatias oposicionistas, o pai, após sofrer pressões na direcção do Centro de Saúde de Lisboa, fora afastado de um concurso para professor na Faculdade de Medicina de Lisboa (ao que parece, por interferência da PIDE), razão pela qual acedera a um convite para trabalhar para a Organização Mundial de Saúde, o que o levara a ser colocado naqueles destinos remotos. Tendo terminado o equivalente ao actual 10º ano no Liceu Francês de Cabul, José Cutileiro regressou a Portugal e aqui concluiu os estudos secundários no Colégio Valsassina. Matriculou-se depois em Arquitectura, na Escola Superior de Belas-Artes, e de seguida na Faculdade de Medicina de Lisboa, mas acabou por desistir do curso, para, com o apoio da Fundação Gulbenkian, rumar em 1963 até à Universidade de Oxford, que, dizia, “o ensinou a pensar” e onde se licenciou em Antropologia Social.

O 25 de Abril interrompeu o que parecia ser uma carreira académica clássica e convencional em instituições universitárias de excelência do Reino Unido: depois de se doutorar, Cutileiro foi fellow do St. Anthony’s College, de 1968 a 1971, e lecturer da famosa London School of Economics and Political Science entre 1971 e 1974. Na altura, porém, a perspectiva de ser professor universitário para toda a vida já não o entusiasmava por aí além. A revolução acabou por salvá-lo desse destino fatídico. Dirá, anos depois, que o 25 de Abril foi “certamente a maior alegria que teve”, fazendo-o mudar radicalmente de vida. No entanto – e convém sublinhá-lo –, José Cutileiro não trabalhou activamente para conquistar lugares nem meteu cunhas ou empenhos junto das novas autoridades políticas. Tudo se resolveu devido a um inesperado e surpreendente convite de Mário Soares, titular da pasta dos Estrangeiros do I Governo Provisório, que o desafiou a ser conselheiro cultural da embaixada de Portugal em Londres, cargo que José Cutileiro ocupou até 1977.

Após o ciclo académico, inicia-se então a segunda e mais duradoura fase da sua trajectória profissional, a de diplomata. Foi embaixador “político”, de nomeação, por oposição aos “de carreira” (para usar a linguagem de casta dos Negócios Estrangeiros), e essa circunstância terá motivado alguma resistência inicial nos corredores soturnos do Palácio das Necessidades. Alguns colegas asseveram, contudo, que as reservas face ao seu nome se deviam tão-só ao facto de ser um embaixador tardio, chamado ao exercício de funções diplomáticas aos 40 anos, quando já tinha créditos firmados, e bem firmados, noutro planeta distante, o mundo académico anglo-saxónico. Doravante, e até ao fim dos seus dias, passou a ser conhecido por muitos, e apenas, como “o embaixador Cutileiro”, não porque tal epíteto conseguisse resumir uma personalidade muito mais rica e densa do que isso, mas talvez porque essa fosse a melhor e mais prática forma de o diferenciar de seu irmão, o escultor e artista plástico João Cutileiro (n. 1937).

A José Cutileiro sempre sobrou em maneiras (e cultura) o que lhe faltou em peneiras, pelo que, porventura, não estaria particularmente apto a abraçar a carreira da diplomacia tal como esta ainda era praticada entre nós em meados dos anos 70. Apesar disso, e com o mesmo e reluzente brilho com que antes se distinguira na academia, desempenhou de forma notável missões muito espinhosas, que sempre exigiram o melhor de si, da sua inteligência firme e serena, da sua visceral aversão a tricas e a quezílias, do seu espírito conciliador e afável, medularmente diplomático, da sua fleuma de fino conhecedor das misérias deste mundo e da tortuosa psicologia dos seus semelhantes, alguns dos quais muito poderosos, como o bárbaro Radovan Karadzic, que Cutileiro teve de enfrentar em 1992, com a carnificina dos Balcãs em pano de fundo.

O currículo, invejável: até 1980, foi representante de Portugal no Conselho da Europa; depois, esteve colocado na embaixada de Portugal em Maputo; posteriormente, exerceu o cargo de representante permanente de Portugal junto da Conferência de Desarmamento na Europa, em Estocolmo. O mais importante veio a seguir, e em cadência acelerada: em 1987, foi nomeado para o importante cargo de director-geral dos Negócios Político-Económicos, o terceiro na hierarquia do MNE; dois anos depois, em Abril de 1989, foi designado embaixador de Portugal em Pretória, e, em 1992, coordenador da Conferência de Paz para a Jugoslávia, presidida por Lord Carrington, cargo que exerceu até 1994, ano em que foi eleito secretário-geral da União da Europa Ocidental (UEO). Permaneceu nesse prestigioso lugar até 1999, mas, numa entrevista de vida concedida em 2017, confessou que o posto que mais gozo lhe dera tinha sido o de embaixador na África da Sul, nos “tempos extraordinários” da agonia do apartheid. Desde logo, pela oportunidade que isso lhe deu de conhecer e de se avistar pessoalmente com Nelson Mandela, um “homem absolutamente extraordinário”. Cutileiro defendeu na altura uma viragem radical na estratégia portuguesa para a África do Sul, advogando a abertura do diálogo com os líderes negros oposicionistas, muitos dos quais ainda presos ou exilados. Vencida a reserva inicial de Lisboa, receosa das reacções da comunidade portuguesa radicada na África do Sul, a mudança proposta veio a revelar-se acertada e frutífera: Mandela seria libertado poucos meses depois e, logo a seguir ao embaixador britânico, José Cutileiro teve o privilégio de ser das primeiras pessoas que Madiba recebeu na sua casa do Soweto, após 27 anos de cativeiro.

Em 2001, precisamente uma semana depois dos atentados de 11 de Setembro, instalou-se em Princeton, no lendário Institute for Advance Studies, que nos anos 30 acolhera Albert Einstein. Num reencontro com a actividade académica interrompida em 1974, permaneceu três anos em Princeton como titular da cadeira George Kennan de Relações Internacionais. Lamentaria mais tarde ter “aproveitado mal” essa experiência tão privilegiada, mas, ainda assim, na América encetou ou aprofundou amizades preciosas, pessoal e intelectualmente: Fritz Stern, Albert e Sarah Hirschman, Morton White, Jonathan Israel, etc. De permeio, publicou em 2003, na Imprensa de Ciências Sociais, Vida e Morte dos Outros. A Comunidade Internacional e o Fim da Jugoslávia, uma análise pessoalíssima, naturalmente amarga e muito desalentada, dos trágicos falhanços na Bósnia-Herzgovina

O 25 de Abril dividiu, com precisão milimétrica, as duas etapas da sua vida, a de scholar distinto e a de embaixador magnífico. Mas, entre a academia e a diplomacia, pairando bem acima delas, há outra dimensão mais constante e perene, que acompanhou toda a biografia adulta de José Pires Cutileiro e terminou no passado sábado nas páginas deste jornal, com um obituário dedicado a uma arqueóloga americana controversa, com nome de actriz porno. Essa dimensão é a do escritor e homem de letras ou, mais precisamente, do cronista de méritos excepcionais, dificilmente igualáveis. Cutileiro começou a escrever em publicações associativas nos alvores dos anos 60: na revista/jornal Quadrante, órgão da Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, participou, logo em Fevereiro de 1960, na secção de poesia, ao lado de nomes como João Marques, Veiga Gomes, Fiama Pais Brandão, José Augusto Seabra ou Vasco Graça Moura. No ano anterior, publicara o seu primeiro livro de poemas, O Amor Burguês, e em 1961, outra obra sua, Versos da Mão Esquerda, surgiu na famosa colecção Círculo de Poesia da Moraes. Uma faceta quase nunca referida, mas relevante, foi a de tradutor: de dois romances de Romain Gary (Lady L. e O Amigo do Diabo, ambos em 1961), e, em 1964, do ensaio As Origens do Amor e do Ódio, do psiquiatra escocês Ian D. Suttie. Em 1971, traduziu para a Gulbenkian um livro com muitas afinidades com a sua tese de doutoramento, o conjunto de ensaios de J. J. Peristiany, Honra e Vergonha: valores das sociedades mediterrânicas (1ª ed., 1971, 2ª ed., 1988), do qual também assinou o prefácio. Em 1974, traduziu, sem que se perceba bem porquê, A Evolução da Vida, de um geólogo norte-americano, Frank T. Rhodes, que pouco depois seria nomeado reitor de Cornell. Além do clássico de Peristiany, prefaciaria outros livros, com destaque para a antologia de textos do seu grande e velho amigo Victor Cunha Rego, para uma pequena biografia do Dalai Lama XIV editada pelo Expresso, e, compreensivelmente, para um coffee table book sobre o Monte dos Perdigões, em Reguengos de Monsaraz, onde fizera o trabalho de campo para a sua tese.

Foi, porém, como cronista que deixou obra mais ampla e profícua. A sua prosa tersa e directa, com laivos de humor viril, muito cáustica consigo própria, enriquecida por uma vastíssima cultura literária e humanística (francófona e, depois, dominantemente, anglófila), fez de José Cutileiro um dos mais originais cronistas portugueses das últimas décadas, senhor de uma ironia finíssima, que ele sabia ser letal. Por isso, raramente recorria a essa arma pesada, preferindo um registo melancólico e suave, avesso a crispações e polémicas. Escrevia sempre com elevação e graça (no fundo, com imensa classe), sem nunca ofender o próximo ou magoar os outros.

Na revista Almanaque, e nas tertúlias geradas em seu redor, tornara-se amigo de Cardoso Pires e de Sttau Monteiro, ambos com uma escrita muito próxima da sua, um modo narrativo indefinível, mas que, forçando a nota, poderíamos caracterizar como “estilo 1960”, a década de Belarmino. Por essa altura, fez-se também amigo de Ruy Cinatti, Alexandre O’Neill, Alçada Baptista, Augusto Abelaira, Sophia de Mello Breyner, Francisco de Sousa Tavares. Na revista O Tempo e o Modo, assinaria um dos seus textos mais citados, o célebre ensaio “Os superportugueses”, sobre o Sport Lisboa e Benfica, revelador de uma iconoclastia que Cutileiro manterá até ao fim da vida e que, em larga medida, ditava a selecção das personalidades tratadas nos seus obituários, muitas vezes desconhecidas em Portugal e até nos seus países de origem, mas que o embaixador escolhia apenas porque sim, porque lhes achava piada.

A fama maior ser-lhe-ia concedida por interposta pessoa, um aristocrata inglês snobíssimo, residente em Sintra, de nome Alfred Barnaby Kotter, cujas opiniões sobre o Portugal do pós-25 de Abril, quase sempre terríveis, eram supostamente vertidas para a nossa língua pelo seu fiel criado lusitano, o ex-comando J. Fonseca, no qual podemos detectar vestígios do Zé Fernandes de A Cidade e as Serras (a influência de Eça na obra de Cutileiro dificilmente pode ser sobrestimada). Os “Bilhetes de Colares”, de A. B. Kotter, fizeram furor em sucessivas publicações: pela mão de Victor Cunha Rêgo, surgiram em 1982 nas páginas de A Tarde, transferindo-se depois, também através de Cunha Rêgo, para o novel Semanário. Apareceriam mais tarde no primeiro número da revista Visão, onde permaneceram até 1998, altura em que se fixaram em definitivo na revista de O Independente, à época dirigida por Vasco Pulido Valente, seu amigo de infância. Nos primeiros tempos do “Bilhetes”, muitos julgaram que o alter ego de Cutileiro era uma pessoa real, verdadeira, acreditando que existia mesmo – o que, de resto, não era de todo inverosímil – um inglês reaccionário, com uma mãe protofascista, a morar tranquilamente em Colares, numa propriedade chamada Quinta da Beldroega. Em 2007, a Assírio & Alvim publicou todas as crónicas de A. B. Kotter, mas já antes, em 2004, com a sempre impecável organização de Vasco Rosa, O Independente dera à estampa, na saudosa colecção “Horas Extraordinárias”, uma antologia dos “Bilhetes” publicados entre 1993 e 1998. Da sua bibliografia constam ainda um livro de entrevistas com o jornalista Ricardo Alexandre (Visão Global. Conversas para entender o mundo, 2009) e o mais recente e admirável livrinho Abril e Outras Transições (Dom Quixote, 2017).

À parte um breve namoro com o PCP, durante as presidenciais de 1958 (em que ganhou o nome de código Rodin, por causa do seu irmão escultor), e de uma fugaz e pouco relevante militância no Partido Socialista, no imediato pós-revolução, José Cutileiro nunca se deixou seduzir pela política activa e, menos ainda, pela política partidária. Ideologicamente, foi sempre um homem de esquerda, da esquerda moderada que tem navegado à vista entre o socialismo democrático e a social-democracia. Proclamava-se céptico, antes de tudo o mais, o que não o impediu de ser um atlantista e um europeísta empedernido, na teoria e na prática, que se empenhou a fundo nas negociações de adesão de Portugal à CEE e que, mais tarde, foi chamado a participar como conselheiro nas presidências portuguesas da UE e designado, em 2005, conselheiro político especial do presidente da Comissão Europeia José Manuel Durão Barroso. Até ao fim, foi um observador atento da realidade do mundo, como o demonstraram, entre o mais, as suas crónicas no Jornal de Negócios ou os comentários de política internacional na televisão e no programa “Estado de Sítio”, da TSF. Conservador tolerante e sui generis, que odiava dar lições de moral aos outros, ateu convicto mas nada inflamado, tinha consciência das suas origens sociais e da superioridade dos seus dotes, mas o bom senso e o bom gosto sempre o impediram de se tornar insuportável, ao contrário de tantos outros da sua geração, de resto bem menos valiosos do que ele.

A sua última aparição pública teve lugar, creio eu, na sessão de lançamento do derradeiro livro, Inventário. Desabafos e divagações de um céptico (Publicações Dom Quixote, 2020), resenha de textos saídos no blogue Retrovisor, da sua amiga Vera Futscher Pereira, com primoroso prefácio de Ricardo Soares de Oliveira. Num final de tarde de Fevereiro passado, reuniu-se no Grémio Literário uma plateia não muito numerosa mas sincera (o que é raro em tais ocasiões), que teve o privilégio de assistir a mais uma demonstração de talento de Bruno Vieira Amaral. E, na intervenção final do autor, a lucidez intacta – e o eterno verbo sábio, bem-humorado e feliz. Não sabíamos ele nem eu, claro está, que poucos meses depois lhe estaria a escrever o obituário, ademais no lugar que durante tantos anos foi seu, indisputado, e sempre exercido ao nível máximo.

Era casado há mais de duas décadas com Myriam Sochacki e tinha um filho de um anterior casamento, e um neto. Residia em Bruxelas, onde morreu e foi cremado na quarta-feira passada, ao som da “Marcha Fúnebre de uma Marioneta”, de Charles Gounod, por si escolhida para a ocasião. Há poucos meses, arrendara uma casa em Cascais, com vista para o mar, e, como chegou a dizer em entrevistas, tencionava fixar-se em definitivo na sua pátria, que sempre amou (e que o condecorou com as grãs-cruzes do Infante, em 1983, e de Cristo, em 1995). A viúva não revelou à Lusa a causa da morte e, portanto, é coisa que não interessa.