Opinião

Diário da Peste. Uma fé que se transporta

Diário da Peste,
13 de Maio

A Nossa Senhora levada em carrinhas de caixa aberta.
Dia de crença para muitos.
Uma fé que se transporta. Fé nómada.
Nas aldeias, pessoas aproximam-se dos cruzamentos para ver passar a imagem da Nossa Senhora.
Algumas pessoas mais velhas ajoelham-se no cruzamento.
O artista Santiago Sierra em tempos colocou desempregados a segurarem uma parede a 60 graus.
Um trabalho inútil, uma provocação.
Trabalhavam por turnos a suportar uma parede nessa inclinação exacta.
O que aceitas fazer quando estás desempregado?
Escrever uma lista.
Os cruzamentos são sempre problemas, a não ser que venhas já de casa com uma resposta.
Parlamento europeu cedeu há uma semana “um dos seus edifícios em Bruxelas para acolher dezenas de mulheres sem-abrigo.”
Afastam-se mesas e cadeiras para se fazerem quartos.
Escritórios passam a dormitórios. Há comida e médicos.
A OMS diz que os humanos podem “ter de viver com o covid-19 para sempre como se vive com o HIV”.
Uma amiga que está no campo diz-me que alguém perto dela cortou a Araucária.
Tem de ser, diz.
É uma árvore que cresce demasiado.
“foi decapitada”, diz ainda.
Há uma narrativa que assegura que as árvores não podem crescer mais do que um certo tamanho sem porem em perigo a vida do dono da casa.
A altura da natureza, o comprimento e largura do medo.
A palavra decapitar introduz um tremor em qualquer frase.
Mesmo que perto do jardim.
Lavoisier foi guilhotinado na Revolução francesa em 8 de maio de 1794.
Dias atrás. Não se assinalou a data.
Fundamental na química e na biologia.
Identificou o Oxigênio (1778) e o Hidrogênio (1783). Etc.
Dar nome e dominar as pequenas coisas. A mesma ciência em 2020.
Foi executado em quarto lugar, num total de vinte e oito cidadãos que ficaram sem cabeça nesse dia. Lagrange, um matemático: “nem num século se conseguirá produzir uma cabeça igual à que se fez cair num segundo.”
Um século, um segundo.
Duas medidas. Tudo é tempo.
Mudar o ritmo das coisas.
Uma guilhotina que demore um século a cair. Ou apenas ano e meio, até se ter vacina.
Uma fábrica com novos ritmos.
Livros velhos da escola. Desempacotar coisas, pó, alergia.
Quase na mesma página, a lei de Lavoisier e a bela revolução francesa.
Voltar a fazer velhos livros até que os velhos livros fiquem outra vez novos.
“Presidente de Madagáscar rejeita críticas ao chá "curativo", denunciando uma atitude condescendente em relação à medicina africana.”
A planta usada no chá chama-se artemísia.
Alguns efeitos terapêuticos comprovados noutras doenças.
Os nomes de plantas e árvores são nomes de deusas - ou podiam ser.
Parecem curar o corpo só pela vibração do nome no ar.
Mas por vezes a vibração não basta. Os vivos exigem outras coisas.
Reparo que poucos animais têm nomes de deuses; compreender o porquê. Mas não agora.
Os gregos gostavam mais da melancolia das plantas.
Tonturas, tenho de ver isto. Demasiados dias assim.
Deitado fico bem, mas por vezes é bom estar sobre dois pés.
Não parecem dias - mas dias no meio de qualquer coisa.
Como se o dia mesmo terminado não fosse completo.
Está sempre entre uma coisa e outra.
Estes dias são sempre o irmão do meio.
Necessidade de leveza; dar comida aos cães organiza o meu tempo; sem a fome deles certamente estaria com mais vertigens.

-----

Índice

Diário da Peste. É preciso dizer adeus nas alturas
Diário da Peste. Alguém mexeu na aparelhagem geral do mundo e diminuiu o som
Diário da Peste. A informação é o fogo do século e o século está frio
Diário da Peste. É como deixar cair uma mancha de tinta em água limpa