Opinião

Diário da Peste. O medo tem de voltar ao coração dos animais selvagens

Diário da Peste,
6 de Maio

Na Europa, os humanos já começam a regressar e com eles o medo muda de posição.
O medo tem de voltar ao coração dos animais selvagens.
Os animais selvagens vão ter de recuar para 2019.
Nessa altura, estava mais ou menos claro que o centro das cidades não era para os chacais.
Voltaire: “todo o mal chega a voar e parte a coxear.”
Alexander Kluge escreveu sobre a tragédia nuclear de Fukushima.
E lembrava como há um mercado para trabalhadores temporários, muito bem pagos, que fazem operações perigosas - reparação de reactores nucleares danificados.
Na Europa, nas Américas e no Oriente. Notícias de testes para vacinas.
Em alguns sítios, testam-se vacinas em braços temporários.
Braços temporários bem pagos.
É evidente: os robots são inábeis em muitas tarefas.
Não têm braços que sejam tão humanos como os braços humanos, por exemplo.
Mas são úteis.
Anoto dois pontos relevantes.
A minha máquina de café está em vias de colapso e o fogo continua a funcionar em 2020.
Brasil. O escritor Sérgio Sant'Anna foi internado com sintomas do Covid -19 no Rio de Janeiro.
Informação do filho, o também escritor André Sant’Anna.
Centenas de mortos no Brasil.
Morreu o músico brasileiro Aldir Blanc.
“Caía a tarde feito um viaduto E um bêbado trajando luto me lembrou Carlitos”
Um deputado de Ohio recusa usar máscara para não ofender Deus.
Nino Vitale, o deputado: o homem foi criado à imagem de Deus, tapar o rosto seria desrespeitá-lo.
O deputado utilizou o Facebook e explicou que “não vai usar máscara por motivos sagrados”.
Podemos também pensar no uso ou não do Facebook por motivos sagrados.
Somos criados à imagem e semelhança de Deus, disse.
Interessante pensar se o rosto no ecrã continua a ser um rosto humano à imagem e semelhança de Deus.
Um rosto que fica dentro de um rectângulo.
E que quando falta a electricidade desaparece.
Mas também o escuro natural é assim: faz desaparecer o rosto do outro.
O deputado disse: quem quiser é livre de usar máscara mas "a liberdade dos outros termina na ponta do meu nariz.”
O nariz de um, o nariz de outro.
Projecto: marcar a giz a fronteira entre duas pessoas como se fossem dois sólidos.
Mas o corpo não é só nariz, nem ponta dos pés.
Há ainda os líquidos. E a respiração.
Lembro-me do belo conto de Gogol, O nariz.
O importante é que não nos roubem o nariz.
Na próxima semana, chuva de meteoritos do cometa Halley.
Aguardamos o momento para em coro virar a cabeça para cima.
O segurança de uma loja do Michigan foi morto depois de pedir para pôr máscara a uma pessoa que queria entrar.
O meu nariz, a tua vida.
Bala com bala, Aldir Blanc; letra, João Bosco:
“A sala cala e o jornal prepara quem Está na sala Com pipoca e bala e o urubu sai Voando, manso.”
Os surrealistas diziam que era preciso cortar o cabelo e o nariz.
Talvez para mudar de vida.
De qualquer maneira, é isto: o outro como perigo.
A epidemia mostra que não existem confusões: o outro não sou eu.
Eu não sou um outro.

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