Tolentino de Mendonça, Poeta de Deus que tanto escuto, escreve, claro está, divinamente.
Entre muitas das suas crónicas semanais no Expresso , gosta pontualmente de nos fazer refletir através da utilização de verbos que dão sentido ao que nos quer contar. Uma forma bela e singular de nos remeter à simplicidade das ações que preenchem os nossos dias, dando-lhes o valor que realmente merecem .
Por estes dias tenho-me recordado de um em particular. José Tolentino Mendonça escreveu um dia sobre o verbo “Parar”. Diz-nos Tolentino que “ tendencialmente as nossas vidas têm-se tornado uma espécie de cidade que não dorme. O tempo parece-nos sempre escasso face ao programa que nos impomos (...) Por muito que façamos, as metas mantêm-se longínquas; nada nunca basta; a parte mais intima de nós sente-se permanentemente irresoluta, em dívida e em perda.”
O mundo parou. Ou obrigou-nos a parar. E todos, cada um à sua maneira, vive essa realidade. Cabe a cada um aproveitar este tempo para refletir sobre o que o dia-a-dia nos exigia. Talvez, mais à frente, quando aí chegados, possamos ou queiramos mudar alguma coisa.
Mas além de Parar, uma pandemia obrigou-nos também a Adiar. Dei por mim a perguntar o que escreveria Tolentino Mendonça sobre este verbo...
Não há ser humano neste planeta que não tenha adiado alguma coisa. De repente, todos os projetos, sonhos e desejos ficaram suspensos. E se há adiamentos que podemos deixar para depois, outros há que nos ficam a rondar mais intimamente. Talvez aqueles, que hoje limitados pela imprevisibilidade, pela distancia e pelo isolamento, ganharam outra relevância. Adiámos férias. Adiámos um encontro. Uma reunião importante ou um investimento. Adiámos uma consulta, uma visita que nem queríamos fazer, uma conversa que nem queríamos ter. Adiámos a compra daquela peça de roupa, daquele abraço que alguém esperava. Adiámos tudo o que julgávamos prioritário, mas que agora já não é. Ou passou a ser. Sim, adiámos as nossas vidas. E não sabemos quando e em que condições a teremos de volta.
Todos teremos perdas. De pessoas, de bens, de ilusões. Todos teremos que reconstruir e todos nos perguntaremos o que quereremos realmente retomar e o que não quereremos verdadeiramente adiar. As motivações que até hoje nos faziam perseguir o que julgávamos essencial, darão espaço ao que que cada um sente, quer e pode realmente fazer.
Os próximos tempos serão de sobrevivência, também interior. O isolamento impôs a distancia de pais e filhos, amigos, casais, por vezes dentro das próprias casas. Falta-nos o cheiro, o toque, o gesto que nos esquecemos de fazer. Faltam-nos as expressões, o sorriso, o olhar, a cumplicidade que o mundo virtual ainda não consegue substituir. Falta-nos talvez muito do que adiámos no dia-a-dia do nosso próprio e pequeno mundo.
A distancia afasta-nos hoje dos mais velhos, talvez no momento em que julgamos ser o tempo em que mais precisam de nós. Talvez não seja só este o momento. E só hoje nos damos conta disso...
E talvez por tudo isto, a distancia instalou-se também em cada um de nós. O cenário de guerra virou-nos as vidas do avesso. O (nosso) mundo mudou-se para dentro das nossas casas. O escritório, os filhos, a escola, os amigos, a família, o ginásio, vivem agora confinados a alguns metros quadrados. E embora descubramos em tudo isto coisas surpreendentes, descobrimos também quão o espaço de cada um é vital. Vivemos na esquizofrenia da ausência e overdose de comunicação. Duma proximidade que ambicionamos e de um espaço que precisamos. Sim, precisamos de distancia interior para nos organizarmos e fazer escolhas. De tocar um equilíbrio que, por não opção, ora temos a mais, ora que temos a menos.
Eu, que por inerência profissional estudo e trabalho em comunicação, habituada que estou a observar a forma como as pessoas interagem, não consigo evitar de me espantar com este fenómeno de transformação humana. As pessoas caminham de olhos no chão. Os rostos estão endurecidos, as costas fletidas. As redes sociais esvaziaram-se de vidas perfeitas, os egos foram guardados nos armários. Uns falam mais alto, outros deixaram-se de ouvir. Lideres mundiais contradizem-se nas mensagens, heróis anónimos dizem-nos tudo só com o coração.
Vivemos tempos de desorientação emocional. Queremos todos dizer alguma coisa, mas não sabemos o quê. Adiámos os discursos bem planeados das nossas vidas, porque agora parecem já não ter o mesmo sentido. Tudo parece insignificante, enquanto assistimos em direto e atónitos ao desmoronamento social e económico do mundo, dia após dia cada vez mais próximo das nossas vidas, das nossas casas, das pessoas que gostamos. O medo tomou conta das emoções, das nossas expressões, da nossa voz. E lá vamos virtualmente partilhando a nossa nova realidade, escolhendo o melhor fundo da casa e usando a “maquiagem” que nos permite disfarçar os nervos e a ansiedade do futuro adiado, enquanto não aceitamos que depois de tudo isto todos seremos um pouco diferentes... para melhor.
Adiar. Adiámos todos alguma coisa. Os que menos adiaram, são precisamente a geração que o vírus parece querer levar... Como que se chegados ali, do alto das suas vidas vividas, nos quisessem agora dizer , não adiem.
Saibamos assim aproveitar aquilo que diferencia a humanidade de tudo o resto, para sermos mais nós. E ao invés do verbo Adiar, saibamos conjugar mais vezes tantos outros, que talvez nos façam dar melhor uso ao verbo Viver.