Opinião

Por uma história crítica

Às lições de história que o Senhor Dr. Jaime Gama pretende dar, oponho apenas um pequeno conselho: que leia e se embrenhe no debate que opôs, no século XIX, Alexandre Herculano aos defensores do Milagre de Ourique. Também estes se arvoravam nos únicos patriotas...

Que a história parte de problemas, postos pelo presente, mas a que se procura dar resposta criando distância com os objectos analisados, e que o fazer e escrever história não depende de um quadro pré-estabelecido e repetido ad nauseam, eis dois aspectos enunciados num novo programa de ensino para uma cadeira optativa do 12.º ano do Ensino Secundário. Não conheço os seus autores, nem estava a par de tal iniciativa, mas gostava de declarar, aqui, o meu entusiasmo em relação ao programa intitulado História, Culturas e Democracia.

Claro que há alguns pontos com os quais discordo e que me apresso a explicitar. Por exemplo, apelos à complexidade só por si nada explicam. E um enfase excessivo nas dimensões de uma história cultural não ajudam a compreender o peso de outros factores, a começar pelos pontos de vista económicos e sociais. Muitas outras críticas poderiam ser feitas, tendo em vista afinar o próprio programa. Mas só o facto de se assumir a análise histórica, como base de formação crítica e problematizadora – podendo a partir daqui criar a base para a educação de novas gerações numa república de cidadãos responsáveis, democratas e com consciência cívica – , merece uma leitura atenta.

Contéudo

São quatro os temas ou áreas que constituem este programa que não pretende ser exaustivo. Pelo contrário, marca bem a sua diferença – e interesse em motivar os estudantes – ao apontar para quatro laboratórios. O primeiro diz respeito à necessidade de aprender a história com base na análise crítica de fontes, que são necessariamente plurais e contraditórias. A interpretação da Batalha de Aljubarrota, com a sua diversidade de documentos, a começar por Fernão Lopes, surge com um dos exemplos a seguir. Outros casos poderão ser encontrados explorando as interpretações de manifestações de violência, tais como massacres, limpezas étnicas e genocídios

O segundo laboratório procura alargar a análise às questões do património, material e imaterial. Mais uma vez se procura demonstrar e aprender no contacto com as fontes, que passam agora a ser de um outro teor, permitindo articular diferentes escalas de consciência identitária, da escola ou da família, à região ou à nação e desta a um mundo que é simultaneamente global e espartilhado.

Existe um terceiro campo de grande variedade e que diz respeito aos passados dolorosos da história. A Guerra Colonial concorre, aqui, com a exploração de outros temas, que vão do trabalho forçado ao Holocausto, das migrações laborais ao processo de retorno das ex-colónias. É, aliás, acerca deste campo que os autores do Programa explicam que “assumir as heranças dolorosas pode e deve contribuir para o apaziguamento das relações sociais inerentes a uma cultura democrática”. Hannah Arendt procurou fazer o mesmo, ao ensaiar uma explicação acerca do totalitarismo de que fora vítima.

O propósito do quarto laboratório é claro, pois visa equilibrar uma visão mais dolorosa ou sombria do passado com duas dimensões constitutivas da modernização das sociedades ocidentais e não só: a emergência da figura do cidadão e o aparecimento dos direitos humanos. Haverá, aqui, matéria para aprofundar questões da desigualdade e da discriminação, nomeadamente do ponto de vista racial; e também importará incluir a questão da desigualdade de género.

Debate

O Observador (17 de Outubro) apressou-se a registar o desagrado do Senhor Dr. Jaime Gama, nos seguintes termos: “Jaime Gama critica nova disciplina de História: "militante", "não aceita símbolos nacionais", procura "penitência" de países.

Seria necessário perceber melhor o depoimento e o juízo do ex-Presidente da Assembleia da República acerca de um Programa cujo espírito, em minha opinião, deveria ser adoptado também por muitos departamentos de História das universidades portuguesas.

Suspeito, no espírito crítico do referido Programa, que aquilo que o Senhor Dr. Jaime Gama disse não corresponda, na totalidade, à leitura parcial do jornal on-line onde li a notícia. É que me choca que o nacionalismo do antigo Ministro dos Negócios Estrangeiros vá ao ponto de querer defender uma visão mítica da Batalha de Aljubarrota. Que se acabem com as interpretações múltiplas, com as discussões escusadas, tudo a bem de uma visão posta ao serviço de uma pátria mítica que só o mesmo pode, correctamente, identificar. E quem o não fizer padece de enviesamento ideológico, abrindo a porta a reparações! Nem mais, nem menos. É o que mesmo propõe.

Escusado será perder tempo a comentar uma tal posição. Até porque tenho muita dificuldade em entender as suas palavras quando o mesmo declara: “uma História que não aceita nenhum símbolo nacional, não aceita nenhum herói, não aceita nenhuma causa, não aceita nenhum objetivo estratégico do país, não aceita o país, sendo prefigurado por uma política de Estado — até na parte internacional”.

Enfim, às lições de história que o Senhor Dr. Jaime Gama pretende dar, oponho apenas um pequeno conselho: que leia e se embrenhe no debate que opôs, no século XIX, Alexandre Herculano aos defensores do Milagre de Ourique. Também estes se arvoravam nos únicos patriotas...