Opinião

Revolução digital: os desafios estratégicos das tecnologias disruptivas

A revolução digital, iniciada na segunda metade do século passado, parece não ter fim à vista, sendo hoje um tópico incontornável da agenda de segurança e defesa, debatido sob a perspetiva das tecnologias disruptivas.

E quem considerar que este tema se confina à esfera da comunidade científica, desengane-se, pois as suas implicações estratégicas, de alcance global, obrigam a abordá-lo ao mais alto nível político e militar. Tanto assim é que, ainda no mês passado, este foi um dos principais tópicos de debate da reunião dos ministros da Defesa da NATO, em Bruxelas.

Sendo por demais evidente a transversalidade da revolução digital, em termos do seu impacto no modo de vida das pessoas e no funcionamento das sociedades, não deixa de ser interessante questionarmos o que terá levado a NATO a atribuir tão elevada urgência em debater este tema ao mais alto nível, ao ponto de o incluir na agenda da Cimeira que Londres acolherá já no próximo mês de dezembro.

De entre as múltiplas razões que se possam apontar, realçam-se as profundas alterações geopolíticas a que temos vindo a assistir, que desafiam a outrora inquestionável superioridade tecnológica da Aliança Atlântica, de que tem resultado a sua superioridade militar ao longo dos 70 anos da sua existência. De facto, as vantagens tecnológicas dos aliados, que decorrem de um maior nível de desenvolvimento económico, industrial e académico, deixaram de poder ser assumidas como garantidas.

No domínio militar, o cenário é ainda mais desafiante, pois atores como a China e a Rússia não só aumentaram os seus orçamentos da Defesa ao longo da última década, 83% e 27%, respetivamente, como não mostram quaisquer sinais de abrandamento, enquanto alguns aliados se confrontam com sérias dificuldades em cumprir o compromisso que assumiram na Cimeira de Gales, de atingir 2% do PIB para a Defesa, dos quais 20% para investimento, até 2024.

A estas alterações geopolíticas para um mundo multipolar – com a China a aproximar-se da primeira economia mundial e a investir fortemente em inovação e em capacidades cibernéticas, a par de outras potências, como a Rússia – acresce uma maior proliferação e facilidade de acesso a tecnologias disruptivas por parte de grupos terroristas, o que fará alterar as normas e a forma de fazer a guerra.

São estes os principais fatores que justificam o sentido de urgência em debater e tomar as medidas necessárias para, enquanto Aliança Atlântica que promove os valores da paz e da democracia, continuarmos a liderar a corrida do desenvolvimento tecnológico.

O objetivo passa, pois, por garantir que, no conjunto dos seus países, a NATO, em estreita cooperação com a União Europeia (UE), mantém a superioridade tecnológica no setor da Defesa que, ao contrário do que se verificava no século passado, depende hoje do desenvolvimento tecnológico civil, não podendo dele dissociar-se.

Ora, a prossecução deste objetivo requer que tenhamos presentes dois aspetos fundamentais:

O primeiro consiste na vantagem de uma abordagem coletiva à Investigação e Desenvolvimento (I&D), tendo em consideração que a inovação não é necessariamente liderada pelas nações maiores, como os Estados Unidos ou a Alemanha, beneficiando indubitavelmente dos contributos de outros países de menor dimensão, que saibam alavancar o seu potencial académico e industrial, trabalhando em rede com os órgãos da Defesa e, particularmente, com as Forças Armadas.

O Índice Global de Inovação de 2018 reforça justamente esta ideia, ao colocar a Suíça, a Holanda e a Suécia no topo da lista dos países mais inovadores, à frente dos dois grandes anteriormente referidos. Portugal ocupa a 32.ª posição deste índice de 127 países, o que ilustra as oportunidades de melhoria que temos pela frente, se considerarmos que países mais pequenos, como Malta e Estónia, nos superam neste domínio.

O segundo aspeto fundamental refere-se ao facto das tecnologias disruptivas apresentarem não só inúmeras oportunidades de progresso em diversos campos, incluindo na Defesa, mas também introduzirem novas ameaças à nossa própria segurança.

É neste contexto que deveremos ser capazes de, por um lado, compreender os desafios associados a estas novas tecnologias e, por outro, identificar as medidas que permitam tirar partido das oportunidades e mitigar os riscos para a nossa segurança coletiva.

Comecemos, pois, por analisar os desafios de segurança impostos pela inovação tecnológica, enunciando algumas áreas-chave que devem merecer a nossa maior atenção:

A inteligência artificial, a análise de grandes volumes de dados (big data) e a autonomia são três áreas profundamente interligadas e mutuamente potenciadoras de melhorias exponenciais em termos de capacidade de tomada de decisão rápida, ciberdefesa e desempenho de sistemas autónomos, propiciando a redução de custos de operação e de risco de vida para os militares, designadamente no emprego de drones em ambientes hostis. Todavia, estas tecnologias também apresentam riscos de segurança, ao nível tático, por estarem cada vez mais acessíveis aos terroristas, e ao nível estratégico, pelo facto dos sistemas plenamente autónomos reduzirem a capacidade humana de controlo da escalada de conflitos.

Uma outra área em franca evolução é a das tecnologias quânticas, que exploram a física quântica para o desenvolvimento de sistemas com mais funcionalidades e maior desempenho no âmbito da computação, comunicações, sensores e navegação. As aplicações militares mais conhecidas inserem-se na proteção ou na penetração de comunicações seguras, motivo pelo qual podem ser consideradas tanto uma oportunidade como uma ameaça, pois se nos permitem uma melhor imagem da atividade adversária, também dificultam a dissimulação das nossas próprias operações.

Os sistemas espaciais integram uma outra área tecnológica bastante crítica para a Defesa, estando em discussão a possibilidade de a NATO vir a reconhecer o espaço como um domínio operacional, tal como o fez para o ciberespaço, na Cimeira de Varsóvia, em 2016. Na realidade, os aliados dependem fortemente do espaço para o desempenho de operações militares no âmbito das informações, vigilância e reconhecimento, previsões de meteorologia, comunicações satélite e navegação, sendo que a nossa atual supremacia neste campo se desvanecerá à medida que a tecnologia e os serviços espaciais se tornarem mais baratos e acessíveis.

No plano estritamente militar, salientam-se as tecnologias de veículos deslizantes hipersónicos, que permitem conceber mísseis de grande precisão, enorme velocidade, alcance global e com rotas de voo imprevisíveis. O desenvolvimento desta tecnologia por parte de potenciais adversários colocará sérias dificuldades aos sistemas de defesa antimíssil aliados, constituindo, por isso, um desafio estratégico para os esforços de dissuasão e defesa levados a cabo pela NATO.

Já no plano eminentemente civil, destaca-se o progresso alcançado na área da biotecnologia, particularmente na biologia sintética e nas técnicas de criação de novos micro-organismos, que potenciam avanços muito positivos no setor da saúde, mas que têm de ser implementados de forma responsável, pois oferecem muitas possibilidades controversas, tais como o aperfeiçoamento humano.

Por fim, uma breve incursão pelo 5G, que está já aí à porta e trará mais uma pequena revolução dentro da imparável revolução digital. Com efeito, trata-se de uma tecnologia que rompe com o 4G, pois permite suportar larguras de banda muito superiores, exponenciando a internet das coisas, com forte impacto na vida quotidiana dos cidadãos e das instituições, incluindo das Forças Armadas. O 5G pode ser visto como um facilitador para outras tecnologias, como a inteligência artificial e a computação quântica, apresentando oportunidades de progresso em diversos campos da atividade civil e militar, como, por exemplo, a criptologia, as cidades ou bases militares inteligentes, a telemedicina e o emprego de enxames de drones.

Mas, como certamente já estarão a pensar, a introdução desta nova tecnologia também não está isenta de riscos e ameaças. De facto, ao passo que as atuais redes ligam pessoas a pessoas, o 5G vai permitir ligar uma vasta rede de sensores e robôs, o que pode tornar as operações militares mais mortíferas, desafiando os princípios dos conflitos armados consagrados no Direito Internacional Humanitário. Acresce que a infraestrutura civil 5G pode ser utilizada como uma extensão das redes de comunicações militares, aumentando o risco de comprometimento da informação ou, até, em potenciais cenários de conflito, de utilização dessa infraestrutura como uma arma cibernética.

É perante este conjunto diversificado e muito complexo de desafios estratégicos relacionados com as tecnologias disruptivas, que importa estabelecer as medidas necessárias para tirar partido das oportunidades e mitigar os riscos para a nossa segurança coletiva.

Neste âmbito, uma das recentes medidas adotadas pelas Forças Armadas Portuguesas foi criar um órgão para a inovação e transformação no seu Estado-Maior-General, que assume o papel de catalisador e dinamizador da investigação e do desenvolvimento de conceitos e experimentação, dando maior coerência ao trabalho já realizado pelos três ramos e promovendo a inovação como fator de melhoria contínua e de obtenção de capacidades prioritárias.

Mas, como anteriormente referido, a inovação é uma atividade que não se desenvolve isoladamente, sobretudo no domínio militar, em que a interoperabilidade é um requisito essencial para qualquer capacidade operacional. É por isso que devemos participar ativamente nos programas da NATO e da UE, abrindo portas e criando pontes para que as universidades e empresas portuguesas se envolvam nas suas áreas de conhecimento e tirem partido das oportunidades de cofinanciamento, designadamente no quadro do Fundo Europeu de Defesa, que prevê um financiamento para I&D da ordem dos 13 mil milhões de euros.

Escusado será dizer que não poderemos apenas contar com o financiamento externo. Se Portugal pretende manter-se relevante e credível ao nível militar, será imperativo aproximarmo-nos do compromisso de investimento na Defesa assumido em Gales, em particular, no que concerne aos 20% do orçamento da Defesa para investimento em novas capacidades.

Será, igualmente, fundamental, que o país se empenhe de forma articulada e ao nível interministerial, junto da Nações Unidas, no estabelecimento de códigos de conduta que regulem as questões éticas e legais colocadas pelas tecnologias disruptivas, minimizando as limitações dos atuais instrumentos de controlo de armamentos e salvaguardando os valores da democracia e dos direitos humanos.

E, neste esforço para nos mantermos na vanguarda da inovação, em muitas áreas em que o futuro começa já hoje, convém não esquecer que a rapidez da nossa ação coletiva é um fator crucial. A este propósito, relembro as palavras de Klaus Schwab, fundador e presidente executivo do Fórum Económico Mundial:

"No mundo de hoje, não é o peixe grande que come o pequeno, mas sim o peixe rápido que come o lento".