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Para ver a dois, “Indomável”, é um mistério que leva seis episódios a resolver, enquanto passeamos pelo Yosemite

Recentemente estreada na Netflix, “Untamed”/“Indomável”, escrita pelo mesmo argumentista que nos deu “The Revenant”, é a típica série para ver a dois. Este visionamento em parelha, uma atividade absolutamente trivial e comum a muita gente em muito sítio, ainda que um adormeça de vez em quando, é uma parte fundamental nesta nova forma de ver televisão a que chamamos streaming e pode muito bem ter sido um dos principais motores do seu desenvolvimento e expansão.

Noutro tempo, quem dissesse que ia ficar em casa para ficar a ver televisão era insultado e visto como um perdedor, um loser, como cantou Beck. Ninguém em parte nenhuma aceitaria o desculpa lá, mas prefiro ficar em casa a ver o 1,2,3, em caso de convite para uma jantarada ou sessão de cinema. Hoje, é pacífico ouvir que se vai ficar em casa a ver uma série. É curioso que o streaming tenha pulado por cima esse preconceito sem ter de fazer nada por isso, simplesmente caiu no goto de quem controla os discursos sobre o que é próprio e o que não é.

Pode soar a conversa de cordel, mas é mais fundo do que isso: porque é que a televisão tem má reputação nas nossas conversas e porque é que o streaming tem tão boa? Provavelmente o potenciar de um visionamento a dois, seja em casal, seja pai e filho, avó e neta, tem alguma coisa a ver o assunto. As séries parecem ser pleasure, mas não guilty pleasure, ainda que a infidelidade Netflix seja um facto vivido por alguns, onde ser-se apanhado a ter visto um episódio mais à frente pode ser mais uma surpresa desagradável para o enganado(a).

Nos primeiros segundos de “Untamed” vemos dois alpinistas a escalar o El Capitan, um maciço rochoso no Parque Nacional de Yosemite, com mais de 900 metros de altura. Ao fim de mais alguns segundos, os alpinistas quase se precipitam para o vazio quando o corpo de uma mulher lhes cai por cima.


Ainda embriagados pela espetacularidade desta ótima e espetacular forma de fazer o setup, andaremos os seis episódios a saber quem era a vítima, se esta se atirou ou foi empurrada, e os motivos para a sua morte. Em paralelo, e como acontece na ficção televisão do nosso tempo, os vários personagens ser-nos-ão apresentados com as suas falhas, os seus traumas, os seus segredos, a sua viagem, em resumo, o seu arco narrativo, até porque esse explorar da natureza humana é um requisito fundamental de qualquer série de agora que se preze.

Contemos com dinâmicas ex-mulher/ex-marido, problemas de álcool, mortes não superadas, uma agente hispânica deslocada que é jovem mãe, questões com nativos americanos, cavalos e pick ups, montanhas, fendas rochosas, ursos, tráfico de droga, tatuagens e outros mortos e desaparecidos, esta é uma daquelas produções para ver a tomar notas, que torna mais lógico o visionamento em conjunto. E podemos sempre ir perguntando “quem era este, quem era aquele”?

Não sendo a melhor série do mundo, “Untamed” tem atores que reconheceremos e ajudam a dar crédito e um desenvolvimento narrativo com um ritmo de encadeamento nem sempre conseguido. Há alguma vontade em excesso de enriquecer a trama principal, que pode estar relacionada com caminhos a abrir para novas temporadas, saberemos mais tarde.



A Netflix e outras plataformas têm uma lista extensa de exigências técnicas para quem queira produzir originais para eles, essa lista de câmaras e lentes está disponível na Internet. Menos fácil de conseguir serão os critérios daquilo que a plataforma procura. Com certeza conteúdos de apelo universal, com narrativa ortodoxa, personagens com algum interesse além daquilo que fazem, atores que são reconhecidos e gostados em todo o mundo ajudarão, bem como a transversalidade e a possibilidade de se criarem mais temporadas.

Mas talvez a Netflix não queira demasiado tempero nem muita confusão política e social, é bom que tudo fique circunscrito a uma expectativa média. “Untamed” cumpre perfeitamente com esses requerimentos. Para dar uma ilustração, são os exteriores que se impõem sempre, ainda que de uma maneira lisa e neutra, como se a produção não nos quisesse assustar com as rochas e a bicharada. Também não se agita a bandeirola do ambiente e do aquecimento global. Mas não estamos ali para ver um documentário sobre vida selvagem, mas sim para testemunhar o deslindamento de um mistério, a fórmula seduz e conduz, e, enquanto estamos a ver, jogamos o jogo do adivinhar o que acontece para depois sermos surpreendidos, porque afinal de contas não era bem assim.

Claro que podia ser bem melhor, alguns argumentos secundários não têm a consistência suficiente, outros caem do céu e enterram-se na areia em dez minutos, outros ainda não têm grande utilidade, mas “Untamed” é mesmo o que um médico recomenda para dias de verão e descontração. Dir-se-ia até que pode ser o exemplo daquilo que a Netflix quer ter com regularidade na sua oferta.

O fim do último episódio, é onde tudo se explica, num twist entre o previsível e o bem-apanhado. Para os Sherlock amadores, algumas pistas estão por lá a circular nos episódios precedentes.

Sugestões

“Free Solo” (Disney +)

A primeira cena da série “Untamed” mostra-nos o esplendor do El Capitan. Em “Free Solo” (na Disney +) e que venceu o Óscar para melhor documentário e vários Emmy, assistimos a uma incrível viagem verdadeira de escalada do El Capitan, em 2017, sem cordas, só com giz para as mãos, sapatos especiais, preparação e coragem. O jornal “The New York Times" chamou-lhe um dos maiores feitos do desporto, qualquer desporto, em qualquer altura.

Muitas vezes a inconveniência deste tipo de documentários é uma certa transfiguração do protagonista (aqui é Alex Honnold) numa demasiado divindade.

Para mais, se alguém o merecia seria ele, um alpinista e escalador com inúmeros feitos. Felizmente, não acontece. Conheceremos Alex, o seu passado, a sua natureza e ficamos logo a torcer por ele, entre a admiração inevitável e uma familiaridade que talvez não esperássemos. A preparação cuidada do alpinista é vivida com uma determinação sem que haja arestas viradas para o nosso lado, mas a dupla de realizadores tem o cuidado de documentar e explicar a importância do feito, a sua complexidade, o nível de preparação e de ciência envolvida no feito, conseguido em 2017 e nunca mais repetido. Na parte final, durante cerca de meia hora, veremos a ascensão propriamente dita e compreenderemos que é uma questão de vida ou de morte.


Sozinhos na natureza, com Alex e a equipa de filmagens igualmente competente no escalar de montanhas, damos por nós a torcer por um final que conhecemos. Alex consegue, sabemos que vai conseguir, mas no fim, o alívio e a felicidade são imensas. Difícil será não bater palmas.

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