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Bagagem de Mão: um filme fraquito com tiros, feridos e perseguições que aspira a ser um clássico de Natal

Taron Egerton, ator galês que protagoniza o filme
Matt Winkelmeyer

Falando do nosso país, a altura do Natal (e do Ano Novo) é uma das únicas ocasiões em que a programação com legendas é dominante nos canais generalistas. Os filmes de Natal americanos e ingleses falados na língua original dominam as preferências, assinalando que as pessoas que têm a mania de repetir que não veem televisão generalista há 150 anos, talvez não se conheçam tão bem como julgam.

A SIC resiste e programa muito cinema nesta altura, contribuindo para manter uma certa tradição de se ver cinema em família num dos canais principais. O Natal mudou e esticou. É interessante assinalar a centralidade prolongada do televisor durante toda a quadra, estabelecendo (ou restabelecendo) uma determinada visão ocidental do mundo, adaptando-se às manias e aos modismos, mostrando os clássicos e tudo o que é novo e é acolhido no comboio da tradição.

Adorando o Natal e sendo absolutamente pró-Natal (como também é absolutamente a favor de tempo quente e seco, por exemplo), a televisão atualiza e torna o espetador num membro da comunidade alargada do tempo presente.



Este ano é moda o bolo-rei de chocolate e meter pecinhas de sushi a fingir na árvore? Se assim é, mais tarde ou mais cedo, a televisão chegará lá. Ao mesmo tempo, a televisão reitera tradições, porque esse é um dos seus papéis, como o patriarca à cabeceira que promove o brinde. É um patriarca que não quer dar nas vistas, nem sair do guião, conservador, cordato, que ama a sua família (o espetador).

Assim, através da televisão, veremos de novo prédicas contra o consumismo, o Natal mais sossegado de médicos e profissionais de saúde no 24 de noite, quem sabe a ginjinha de Marcelo no Barreiro, voluntários que abrigam os sem-abrigo, bebés que nascem neste dia, tudo decorado com notas de modernidade, como natais de outras culturas, natais em comunidades de imigrantes, natais em hotéis e natais exóticos que chegam através das televisões internacionais.

As lareiras são substituídas por aquecimento central, os carros são elétricos, os brinquedos foram anulados pelos telemóveis e desde há uns anos que na programação o Natal televisionado seja tempo de “reality shows”, “Preço Certo”, novelas e demais programação corrente. Todos o aceitamos, como as garrafas de Sumol e prato de nuggets ao lado do tinto e do bacalhau, a vida não pára.

Ainda assim, como o Natal é resistente, nesses conteúdos veremos um barrete de Pai Natal ou o ocasional pinheiro decorado a um canto.

O Natal é de facto melhor quando é conspícuo e contem com a televisão para o servicinho. Do circo ao filme de sempre, passando pelas cerimónias ponderosas, palavras de circunstâncias, retóricas de otimismo e esperança e agora também o “Preço Certo” com o Fernando Mendes disfarçado de Pai Natal e concorrentes de reality melancólicos junto à piscina, cofiando a barba postiça de Pai Natal que o obrigaram o usar nessa noite.

É inegável: as televisões expandem a época, numa espécie de desígnio autoimposto que as plataformas de streaming têm seguido, com lotes de filmes doces a serem adicionados à seleção. (Ninguém nos diz que os anúncios de Natal ali por outubro e as iluminações que as câmaras começam a montar em novembro não tenham tido origem na ‘televização’ gargantuesca do Natal).

Há algum tempo que os “filmes que dão no Natal” saíram do redil mantido pela alegoria de Dickens, refiro-me às fábulas de sempre, aos filmes com mensagem literal ou quase. No passado, a RTP costumava emitir um dos melhores filmes de Natal de sempre (inspirado no clássico de Dickens, já agora), “Do Céu Caiu Uma Estrela” (“It’s A Wonderful Life”, de 1946, com James Stewart), no meio de concertos de música clássica, saltos de esqui e circo.

Hoje, os filmes de Natal podem continuar a ser sobre gente atarefada que compra presentes à última hora e se apaixona nas escadas rolantes dos armazéns, mas agora também são exibidos a eito - e como “filmes de Natal” -, filmes e séries normalíssimos, onde a ação simplesmente decorre durante a quadra.

Estreou há poucos dias na Netflix, o fraquito “Bagagem de Mão”, um filme que que aspira a tornar-se um “clássico de Natal”. Está cheio de ação, mortos e feridos, mas como decorre durante a época, “é de Natal”. Confusos? O tema é candente e a conversa do que é (e não é) um filme de Natal tem vindo a dar-se sobretudo a partir da popularidade da Internet por causa de “Die Hard” (1988), (“Assalto ao Arranha-Céus”), com Bruce Willis.

O filme em causa é ou não é um “Christmas Movie”? Porque se a ação decorre numa festa de Natal, a verdade é que estreou num julho, pelo que não é provável que celebrar o espírito da quadra tenha sido a intenção dos produtores. O mesmo aconteceu com “Home Alone” (1990), também tornado um clássico natalício, ainda que o Natal e a sua mensagem sejam absolutamente secundários à trama.

Estive a verificar: no passado, a SIC já o emitiu num mês de maio. E assim, aqui chegámos, ao tempo em que qualquer filme pode ser um filme de Natal, mesmo com tiros, perseguições, mortos e feridos. A vida está cheia de intrigantes paradoxos: este de aceitarmos filmes violentos como sendo de Natal numa quadra que assinala a importância do amor ao próximo, da família, da compaixão e do calor e fraternidade entre humanos, é só mais um. Naturalmente, um bom Natal a todos.

As sugestões

Na SIC, nos dias 24 e 25 há Sozinho em Casa” e no dia 24 à noite há “Love Actually”, (“O Amor Acontece”) um clássico moderno de Natal (sem tiros) com o bónus de contar com a atriz portuguesa, Lúcia Moniz. No dia 25, estreia “Podia Ter Esperado Por Agosto”, um filme de César Mourão. Noutros canais e nas plataformas há dezenas escolhas. A RTP terá circo e uma edição especial do formato “The Voice”.

Na TVI, e na altura em que escrevo, ainda não há novidades específicas de Natal: estão anunciados capítulos das novelas e reality show. Já agora, para os mais curiosos, “Die Hard” está disponível na plataforma Disney +. E também existe um ‘programa’ que não é mais do que um plano fixo de uma lareira crepitante, na Netflix - um género de televisão por si só chamado slow tv. Basta escrever “lareira” no campo de busca.

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