Guerra no Médio Oriente

Uma chávena de cinzas e memória: café Al-Baqa

Um texto de um fotojornalista e videógrafo em Gaza, narrado na primeira pessoa. Abdelrahman Ismail relata como um bombardeamento israelita a um dos cafés do enclave causou destruição e morte, e acabou com os sonhos e memórias dos que o frequentavam. Mesmo daqueles que sobreviveram

Lá, a brisa parecia um sopro roubado a uma memória distante, e o mar encontrava rostos sedentos de luz. O Al-Baqa era mais do que um café, posto avançado de uma vida onde vivíamos suavemente, sussurrando esperança sob o barulho da guerra.

Das suas mesas de madeira olhávamos o que restava do sonho. Organizávamos lutas sob o brilho do pôr do sol, escrevíamos, cantávamos, amávamos e íamos partilhando um silêncio que, além de nós, só o mar entendia. Na costa de Gaza, uma pequena cidade nasceu dentro de outra: sem slogans, distinções sociais, fronteiras. Partilhávamos sinais de compreensão mútua.

Escombros do café Al-Baqa, em Gaza
Getty Images

Para mim era uma segunda casa. Todas as noites, depois das aulas na universidade, do trabalho de fotografia e do treino, fugia para lá como criança para os braços da mãe. No andar de cima não havia paredes nem janelas entre mim e a brisa — só o espaço para que a minha estranha amizade com o mar pudesse continuar a crescer. Era como flutuar num iate, as ondas batiam por baixo, inclinava-me ao seu ritmo ondulante, escrevia, pausava, observava.

Abdelrahman Ismail, de azul, com a irmã (ao seu lado) e amigos no Café Al-Baqa
D.R.

Antes de chegar já sabia quem iria encontrar. Sem combinações prévias, sem mensagens. A porta do Al-Baqa era entrada para uma pátria paralela. Cada mesa guardava uma história, os estofos das cadeiras tinham absorvido horas de risos, lágrimas, debates. Já todos nos tínhamos escondido de alguma coisa dentro de uma chávena de café.

“Se a morte pode reivindicar um lugar, não pode reivindicar a sua história”

As noites de quinta-feira eram sagradas. Apesar da multidão, a minha mesa estava sempre lá. Eu, o meu amigo Wasim e a sua noiva, Dina, sentávamo-nos com o mar, com os empregados que já eram família. “O Al-Baqa não era apenas um lugar. Sempre que entrava, havia braços para me abraçar e mãos para acalmar o meu nervoso. Aquele espaço foi testemunha da minha tristeza e da minha alegria, dos meus triunfos e derrotas. Ríamos e cantávamos. Mesmo que esteja em ruínas, voltarei. Vamos pendurar fotos dos mártires e recomeçar”, disse-me a minha amiga jornalista Rawan Saleh.

O Al-Baqa não era uma janela, era um espelho. Reflexo de um sonho partilhado, fuga ao aperto cada vez mais forte da sobrevivência. A areia tornou-se a cama onde descansávamos da exaustão exaustão, e o mar ia recebendo dali os nossos segredos, como amigo paciente, como se o próprio horizonte prometesse perdão.

A 30 de junho de 2025, esse espelho estilhaçou-se. Não destruíram apenas um café, assassinaram a memória. Mataram Ismail e Amina, deixaram as conversas a metade. Bombardearam os sonhos que tínhamos deixado pousados da última vez que nos sentáramos à beira-mar. Como se os mísseis não tivessem caído sobre madeira e chapas de metal, mas sobre corações pressionados contra o vidro da nostalgia.

Não era alvo militar. Sobre as mesas havia sempre livros, computadores, projetos de estudantes universitários, e zumbido suave da música. Um santuário cívico, uma resistência gentil, que oferecia internet gratuita e café com cardamomo. Um lugar de convívio e reflexão numa cidade onde os pensamentos eram cercados.

“Quem entre nós não se sentou no Al-Baqa? Nós, que visitámos Gaza apenas duas ou três vezes, encontrámos naquele café uma pátria comprimida. Não mataram apenas os nossos amigos, apagaram os nossos espaços”, disse-me a escritora Ahlam Bisharat, que vive na Cisjordânia.

Da sua varanda, olhávamos metaforicamente para Chipre e escrevíamos sobre a liberdade que nos estava vedada. O Al-Baqa era um espaço onde pensamento e sonho se misturavam. Discussões políticas dançavam ao lado de sussurros poéticos, e ambos envolviam um jovem artista a desenhar o mar. Era um laboratório coletivo de liberdade, onde todas as noites reinventávamos o mundo.

Agora, as chávenas de chá estão em cacos, no chão, misturadas com partes de corpos, e o telhado de palha inclina-se envergonhado sobre a carne exposta dos mortos.

A artista Amina Al-Salmi, conhecida como “Frans”, pintou a sua própria morte dias antes do ataque aéreo: três figuras calmas deitadas na areia, de olhos fechados, com sangue a escorrer suavemente. Não sabia que o seu pincel previa o fim. Morreu na sua cadeira favorita, com a cabeça apoiada nas mãos, olhando para o mar — como se tivesse escolhido morrer banhada pela mesma luz com que viveu.

E, no entanto, Al-Baqa continua vivo, no que testemunhou, no que ofereceu e no que se recusa a deixar morrer. Se a morte pode reivindicar um lugar, não pode reivindicar a sua história.

Talvez voltemos, talvez plantemos rosas, talvez penduremos fotos. Talvez dê para fazer café a partir dos grãos da ausência. Porque Al-Baqa nunca foi apenas um café. Era uma pátria, com vista para o mar.