“A posição americana colocou os israelitas numa situação muito difícil. A certeza de que a América não participaria num ataque contra o Irão é, para mim, efetivamente um veto a essa opção”, começa por dizer, ao telefone com o Expresso, o autor de livros sobre o Médio Oriente e analista especializado na região Michael Young.
O Presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, já vinha perdendo um pouco da paciência que demonstrou nos primeiros dias da intervenção em Gaza. A pressão sobre Israel, no seguimento da divulgação de fotografias e vídeos de crianças macérrimas em Gaza e também do ataque à organização não-governamental World Central Kitchen, estava a chegar a um ponto complicado, com alguns meios de comunicação israelitas a escrever que o primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, estaria “desesperado” por um acordo com o Hamas para que pelo menos alguns reféns pudessem regressar a Israel. Tudo isso foi pulverizado ontem, juntamente com mais de três centenas de projéteis que o Irão lançou contra Israel, um ataque sem precedentes na história ácida entre os dois países.
Israel, sem surpresas, foi capaz, com a ajuda dos aliados posicionados na região e com os seus bons sistemas de defesa antiaérea, de eliminar a grande maioria dos drones e mísseis. “É uma vitória, leva essa vitória”, disse Biden a Netanyahu ao telefone esta manhã, como que a avisá-lo que não seriam necessárias outras.
“Vimos ontem que os americanos desempenharam um papel fundamental na proteção de Israel. E se os americanos não estiverem a proteger Israel contra uma resposta iraniana à resposta israelita? Não me parece que possam avançar desprotegidos. Mas também sei que para os israelitas levarem assim com um ataque destes e não responder será muito difícil. Hoje de madrugada, Israel parecia realmente vulnerável, com aqueles drones e mísseis todos no céu”. Netanyahu, diz Young, “é um líder que baseia toda a sua ação política em promessas de ataques esmagadores contra os seus inimigos”.
Outro possível sinal de que a reação poderá ser moderada foi a conversa de Yoav Gallant, ministro da Defesa de Israel, com o seu homólogo americano, Lloyd Austin, após os ataques. De acordo com o Ministério da Defesa israelita, Gallant “sublinhou que o sistema de defesa está preparado para quaisquer novas tentativas de ataque ao Estado de Israel”, sem fazer referência à possibilidade de ataques israelitas.
Um terceiro sinal positivo que surgiu na manhã de domingo foi a garantia, dada ao “New York Times” por uma fonte israelita de que “a resposta de Israel seria coordenada com os seus aliados”. À CNN, porém, uma outra fonte do aparelho de Defesa disse que Israel estava ainda a decidir se “partia a loiça toda” ou não. O Presidente de Israel, Isaac Herzog, também não foi das vozes mais pacíficas. Em declarações à Sky News, considerou o ataque uma “declaração de guerra”.
Mais espaço para a vitimização
Sempre no seu ombro, a refrear qualquer ímpeto de moderação que possa acometê-lo, Netanyahu tem os dois ministros do seu Governo que mais campanha fazem por uma escalada da guerra, seja com o Irão seja com Gaza e a Palestina no geral: o ministro das Finanças, Bezalel Smotrich, que este domingo apelou a uma resposta que “ressoe em todo o Médio Oriente” e o ministro da Segurança Nacional, Itamar Ben Gvir, desejoso que Israel responda “como se tivesse enlouquecido”.
Smotrich, líder do partido de extrema-direita Sionismo Religioso, afirmou que se Israel hesitar vai colocar toda a gente “em perigo existencial”. Ben Gvir, líder do partido de extrema-direita Poder Judaico, afirmou que os “conceitos de contenção e proporcionalidade são conceitos que morreram a 7 de outubro”, o dia do ataque do Hamas a Israel. Estes são dois nomes essenciais para a coligação de Netanyahu. Sem a sua coligação, Netanyahu teria de abandonar o Governo, uma vez que não tem maioria e vários processos no tribunal esperam-no ao virar ao Knesset.
Há apenas um ferido grave, uma menina de sete anos, atingida com estilhaços de um projétil. Para Israel, o ataque do Irão não foi nenhuma tragédia e pode ter vindo legitimar mais alguns meses de intervenções em Gaza que uma grande parte da comunidade internacional vê como desproporcionais em relação à ameaça que o Hamas representa para a viabilidade do Estado de Israel.
“Não tenho certeza se este ataque tornará a vida de Netanyahu mais fácil, mas, definitivamente, mudou a narrativa e agora Israel apresenta-se como vítima de novo. Penso que a resposta da comunidade internacional aqui fará uma enorme diferença em termos do que acontecerá a seguir. Ou começam a pressionar por uma resolução diplomática, ou permitem o excecionalismo em torno do comportamento de Israel”, diz ao Expresso a investigadora Maha Yahya, especialista em assuntos do Médio Oriente no Carnegie Institute de Beirute. “Pode abrir espaço para que continuem a acontecer, como temos visto nos últimos meses, os níveis de destruição em Gaza, que não têm precedentes, a horrível perda de vidas, a fome imposta artificialmente, etc”, diz ainda Yahya, lembrando que o ataque ao consultado iraniano em Damasco, que o Irão diz ser a razão deste ataque a Israel, “viola todas as leis internacionais”.
Mohammad Eslami, Professor de Relações Internacionais na Universidade of Minho, questionado pelo Expresso sobre este trunfo que Teerão parece ter enfiado na manga de Israel, diz que o ministério dos Negócios Estrangeiros do Irão sabia que Israel “iria fazer-se de vítima” mas “assumiu uma posição e fez o possível para lembrar à comunidade internacional que esta operação é na verdade uma resposta ao ataque israelita ao Consulado do Irão na Síria”.
Apesar de as Forças de Defesa de Israel (IDF) apresentarem uma taxa de sucesso de “99%” na interceção de mísseis e drones, o investigador diz que isso não é totalmente verdade porque “não podemos confiar nem no que as forças armadas iranianas dizem sobre a sua taxa de sucesso, nem no que dizem as forças israelitas, até porque sabemos que pelo menos uma base em Nevatim foi atingida e outros locais dos Montes Golã e do sul”.
Para o investigador, o ataque “serviu para demonstrar o poder de destruição das forças armadas iranianas e por isso Israel decidiu não continuar esta escalada para já. Algo que prova o poder de dissuasão do Irão contra Israel. Por outro lado, também é verdade que os EUA impediram Israel de começar uma nova escalada porque já têm muitos problemas em mãos, a guerra na Ucrânia e também a guerra de Israel com o Hamas e e não querem entrar noutra guerra”, explica.
Líbano também não entra
A partir do Líbano, a guerra parece muito mais próxima, e geograficamente é-o de facto, bem mais próxima do que do Irão, que está a mais de 1500 quilómetros.
Há anos que o Hezbollah troca fogo com o exército israelita: a milícia xiita envia morteiros para o norte de Israel, Israel responde atingindo o sul do Líbano. Os libaneses estão aterrorizados com a ideia de uma guerra, até porque não seria a primeira nem a segunda vez que teriam o exército israelita no seu país. “O Líbano já passou por múltiplos conflitos com Israel. E se algum país nesta região entende o preço da guerra, são os libaneses. Não é certo, nada certo, que o país se envolvesse numa guerra. Não está claro se eles se envolveriam”.
É por saberem da tolerância nula dos libaneses a mais uma guerra, que, acredita a analista, nem o Hezbollah tem disparado tanto quanto poderia. “A resposta do Hezbollah tem sido muito mais silenciosa, tem atacado mais em torno das zonas fronteiriças, principalmente em colonatos vazios ou contra militares e mesmo esses ataques não fazem muitos feridos. É muito claro que os libaneses como um todo prefeririam não se envolver”.
Também Young, que vive no Líbano e estava em Beirute no verão de 1982, durante o cerco mantido por Israel para obrigar os homens do líder palestiniano Yasser Arafat a abandonar o país, diz que o alargamento do conflito ao Líbano é um cenário difícil para Netanyahu. “Ainda tem Gaza para ganhar e resolver. Os americanos reduziram realmente a margem de manobra”.
Retaliação velada?
Israel já atacou muitas vezes interesses iranianos, não precisou de lançar mísseis nem drones na calada da noite para mostrar o perigo que pode representar. O episódio recente mais conhecido foi o assassinato, em 2020, do major-general Qassim Suleimani, o comandante do braço internacional da Guarda Revolucionária, com um drone, um drone americano. Em novembro de 2021, Israel assassinou também o principal cientista nuclear iraniano, Mohsen Fakhrizadeh. Em 2018, um grupo com ligações a Israel, conseguiu pôr fora de funcionamento 70% das bombas de gasolina iranianas, através de um ataque informático.
E pode planear o mesmo, para quando menos se espera. “Os alvos do ataque de Israel ao Irão podem passar por ataques com drones às indústrias militares iranianas, fábricas de drones, fábricas de mísseis, etc. Além disso, Israel tem histórico de ataques cibernéticos às redes de energia, a gasodutos, etc. A questão é saber se Israel quer responder diretamente ao Irão ou se vão ambos continuar nesta guerra paralela”, diz Mohammad Eslami.
“Dissuasão é necessária”
Ao mesmo tempo que o Irão lançava os drones e os mísseis, outros aliados do “Eixo da Resistência”, um grupo de milícias que se opõem ao Estado de Israel e que o Irão financia por toda a região, parecem ter conduzido simultaneamente os seus próprios ataques contra Israel, segundo o último boletim diário do conflito do Instituto para o Estudo da Guerra. “O Hezbollah libanês afirmou ter disparado ‘dezenas’ de foguetes Katyusha contra uma base israelitas e mísseis e artilharia nos Montes Golã.
Os huthis publicaram dois vídeos promocionais sobre a destruição de Israel durante a onda de ataques de drones do Irão, mas não reivindicaram qualquer ataque até ao momento. Já a milícia iraquiana Faylaq al Waad al Sadiq, apoiada pelo Irão, felicitou a Resistência Islâmica no Iraque a 13 de Abril por participar no ataque contra Israel, apesar de a própria não ter ainda reivindicado nada. A Organização Badr, outra milícia iraquiana anti-Israel apoiada pelo Irão, publicou um gráfico celebrando o ataque do Irão a Israel, afirmando que estar “entre aqueles que se vingaram”, sugerindo um apoio não especificado ao ataque.
São relatórios como estes que consolidam na mente de Seth Frantzman, investigador na Fundação para a Defesa das Democracias e analista militar especializado em conflitos no Médio Oriente, a ideia de que “a retaliação é necessária”.
Esta madrugada, na sua casa em Jerusalém, virada a sul, teve “palco privilegiado” para “provavelmente o maior ataque, de uma só vez, com drones e mísseis que um país já experienciou”, diz ao Expresso. “Todos estes mísseis foram interceptados, porque temos boa tecnologia, temos sorte, temos aliados. Mas são na mesma 300 mísseis e drones, é um ataque sem precedentes. Acho que é provavelmente uma das maiores interceptações em massa de mísseis balísticos. Isto foi projetado para causar danos significativos, e lá porque não tiveram sucesso, não acho que possamos viver com a ideia de que ter defesas aéreas é um substituto para ter estratégia”.
E ter estratégia é retaliar, na opinião de Frantzman. “O Irão desestabiliza toda a região, tem os seus exércitos por procuração espalhados por todo o lado, mataram três norte-americanos na Jordânia em janeiro e o que é que os Estados Unidos fizeram? Retaliaram. E não houve mais ataques. O Irão sequestra navios, certo? Pronto, podemos fazer isso, ir atrás da frota deles, porque não? Em 2019 o Irão atacou o sistema de produção de energia da Arábia Saudita, façamos isso, não é preciso matar pessoas”, diz ao Expresso enquanto guia pelas ruas “com tudo quase fechado” em Jerusalém.
Gaza antes do resto
Frantzman considera que o Irão é “é encorajado - e não dissuadido - sempre que sente que pode atacar” e vê que o Ocidente “não vai fazer nada porque todos os aliados de Israel têm medo de uma guerra alargada com o Irão”. Quando a questão é retaliação, “até Israel passa a batata quente, no caso dos huthis por exemplo, acham que não é nada com eles, e por isso continuam a causar imensos problemas a embarcações de aliados de Israel”. O ataque à embaixada na Síria, no entender de Frantzman, não pode justificar este tipo de ataque. “Lançar 300 drones e mísseis contra Israel não é uma retaliação por um ataque aéreo. É uma tentativa do Irão de mostrar as suas capacidades ofensivas, projetar poder e mostrar que pode causar estragos nos céus do Iraque e da Jordânia”, diz.
Maha Yahya não alinha pela necessidade de uma retaliação. “O que vimos ontem é uma gota no oceano do que ainda pode acontecer se Israel começar a retaliar, e depois o Irão voltar a retaliar. O ataque que foi lançado foi um espectáculo de luzes porque os iranianos sabiam muito bem que muito do que tinham enviado seria interceptado antes de chegar ao espaço aéreo israelita. Era para enviar uma mensagem, não para causar nenhum tipo de dano significativo”.
O grande problema, para Yahya, é Gaza, e é isso que tem de se resolver primeiro. “A atenção agora deslocou-se de Gaza e é necessário realmente manter a atenção em Gaza. Há fome. As pessoas estão a morrer. Todos os indicadores são simplesmente catastróficos, o epicentro da instabilidade neste momento é o que está a acontecer em Gaza”. O termómetro do Médio Oriente só pode baixar “com um cessar-fogo em Gaza, mas também tem de se aplicar às outras frentes que se abriram nos últimos sete meses, como Líbano e o Iémen”.