Guerra no Médio Oriente

Primeiro navio do que pode vir a ser “uma autoestrada marítima” de ajuda para Gaza já partiu de Chipre

Desta leva são 200 toneladas, mas outras 300 ficaram em terra, à espera que mais navios se juntem à autoestrada marítima que várias organizações não-governamentais querem abrir para Gaza. O navio Open Arms, cuja principal função tem sido o resgate de migrantes no Mediterrâneo, partiu esta manhã de Chipre com o primeiro carregamento, mas as necessidades aflitivas dos palestinianos não poderão ser suprimidas se não houver um esforço concertado para uma entrega contínua de alimentos. Para isso, Israel tem de abrir as fronteiras terrestres

IAKOVOS HATZISTAVROU

O navio Open Arms, da organização não-governamental espanhola Proactiva Open Arms, partiu esta manhã do porto de Larnaca, em Chipre, com direção a Gaza, onde a tripulação espera conseguir entregar as 200 toneladas de comida que foram colocadas a bordo por uma outra organização não-governamental, a World Central Kitchen, especializada em entregas de alimentos em cenários de guerra ou desastre natural.

Em terra ficaram outras 300 toneladas, prontas para serem carregadas no regresso do Open Arms ou em qualquer outra embarcação que se disponibilize para o efeito. “O nosso objetivo é estabelecer uma autoestrada marítima de barcos abastecidos com milhões de refeições que se dirijam de forma contínua para Gaza”, afirmaram o fundador da World Central Kitchen, o chef José Andres, e a directora-executiva, Erin Gore, num comunicado, citado pela agência Reuters.


Esta missão, financiada maioritariamente pelos Emirados Árabes Unidos, vai servir para perceber o que se pode fazer por via marítima, numa altura em que a ajuda que entra por terra chega a conta-gotas a Gaza e a situação humanitária é cada vez mais desesperada. A ideia é entender se uma rota marítima é mais segura, tanto para quem entrega comida como para quem a recebe, isto porque o lançamento de caixotes com comida sobre Gaza, a partir de aviões militares, já provocou cinco mortos e 10 feridos. É raro, mas acontece que os pára-quedas acoplados a esses caixotes não abram, e nesses casos as embalagens caem a uma velocidade enorme sobre o solo.


As primeiras imagens, divulgadas pela Reuters, mostram o Open Arms a puxar um atrelado com o que parecem ser dezenas de contentores com tamanhos e volumes diferentes, cobertos por um oleado contra qualquer alteração do clima que possa ocorrer na viagem. Se fosse só o navio, a viagem, calcula a notícia da Reuters, demoraria mais ou menos 15 horas (Gaza dista pouco mais de 300 quilómetros de Chipre), porém com o peso extra do atrelado, a chegada está prevista para quinta-feira de manhã, cerca de 48 horas.

As cargas foram submetidas a inspeções de segurança em Chipre por uma equipa que incluiu membros israelitas, eliminando a necessidade de rastreios no desembarque.

Dada a falta de infraestruturas portuárias, José Andrés também adiantou, na rede social X, que a organização está a construir um cais de desembarque em Gaza com material proveniente de edifícios destruídos e de escombros. A construção está “bem encaminhada. Podemos falhar, mas o maior fracasso será não tentar!”, escreveu, publicando uma fotografia de alguns bulldozers que tentam, aparentemente, nivelar uma parcela de terreno perto do mar em Gaza.


Outros esforços para a entrega de comida continuam, uma vez que a assistência “normal” a Gaza, a entrada de bens essenciais por via terrestre, não consegue suprir as necessidades da população. Philippe Lazzarini, comissário-geral da agência da ONU para os refugiados palestinianos, disse no X que, no mês fevereiro, as entradas de ajuda caíram 50%.

Só na segunda-feira, segundo a Reuters, as forças armadas americanas lançaram de para-quedas mais de 27.600 refeições e 25.900 garrafas de água para o norte de Gaza.

Um navio da marinha norte-americana, o General Frank S. Besson, também está caminho para prestar ajuda humanitária a Gaza por via marítima.

A organização por trás do Open Arms está ativa no resgate de pessoas no mar Egeu, na Grécia, desde 2015, quando uma equipa de pessoas sem qualquer equipamento além de um pequeno barco (que não era ainda o grande navio Open Arms que vemos nas fotografias hoje) nadava até aos náufragos e trazia-os em braços para segurança, sem lanchas ou qualquer outro equipamento além da capacidade física de nadar.

Desde aí, a organização profissionalizou-se, a crise de refugiados tornou-se um tema constante nos jornais europeus e as duações foram permitindo comprar lanchas, outros barcos maiores barcos, até que, em julho de 2017, adquiriram o Open Arms. Entre as várias missões, já salvaram a vida a cerca de 100 mil pessoas. Quando a invasão em grande escalda da Ucrânia começou, levaram comida, pelo Danúbio, até Odesa.


Pelo menos meio milhão de pessoas, ou seja, uma em cada quatro pessoas em Gaza, estão já em situação de fome, segundo várias agências humanitárias no terreno. Esta primeira entrega de comida não vai conseguir aliviar muito a situação e será necessário que a tal autoestrada possa funcionar em permanência, pelo menos até um acordo entre o Hamas e Israel que alivie o bloqueio que Israel tem imposto sobre a entrada de camiões de ajuda humanitária.

Os raros momentos em que ajuda entra têm-se tornado momentos de tensão - e, em alguns casos, de morte. Pelo menos nove pessoas morreram esta terça-feira de madrugada, e pelo menos 20 ficaram feridas, enquanto esperavam por camiões de ajuda perto da rotunda do Kuwait, na cidade de Gaza,escreveu a agência de notícias turca Andalou. As autoridades palestinas dizem que Israel conduziu ataques aéreos, largando bombas onde as pessoas estavam a recolher comida. Israel nega este incidente como nega também ter tido qualquer intervenção num outro episódio que é conhecido entre os meios de comunicação locais como “o massacre da farinha”.

Aconteceu a 29 de fevereiro, quando disparos israelitas provocaram o pânico, desencadeando uma debandada onde várias pessoas morreram. Israel diz que a debandada e os atropelamentos aconteceram porque as pessoas se abalroaram na busca por comida, mas várias testemunhas no local disputam esta leitura e dizem que o pânico só começou quando Israel começou a disparar. As forças israelitas não negam os disparos, apenas dizem que foram forçados a usar armas quando um grupo de civis se começou a aproximar das suas posições. Pelo menos 110 pessoas morreram.

A fome e a subnutrição são generalizadas na Faixa de Gaza. As Nações Unidas alertam para a iminência de uma situação de fome, tendo o perito da organização em matéria de direito à alimentação, Michael Fakhri, acusado Israel de estar a matar deliberadamente os habitantes de Gaza à fome. Entretanto, a Ministra dos Negócios Estrangeiros alemã, Annalena Baerbock, afirmou que as pessoas em Gaza estão mais perto de morrer do que de viver. No entanto, o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, nega que haja fome em Gaza. “Não temos esse tipo de informação. Não é essa a informação que temos. E estamos a monitorizá-la de perto”, disse ao Politico.