A decisão de Emmanuel Macron de convocar eleições legislativas em França para o fim de junho e início de julho deu o tiro de partida a uma semana frenética na política gaulesa. Perante a vitória avassaladora do partido de Marine Le Pen, o Reagrupamento Nacional, nas eleições europeias do dia 9 de junho – cilindrando qualquer concorrência com 31,37% dos votos, superando largamente os 14,6% do Em Marcha! de Macron – e com a decisão do presidente da República gaulesa de convocar eleições legislativas, o risco de França entrar no pico do verão com a câmara baixa do parlamento francês nas mãos da extrema-direita tornou-se real.
Os partidos, tanto à esquerda como à direita, viraram baterias para as eleições e começaram a gizar estratégias, quer para conter a ameaça da extrema-direita, quer para garantir que esta elege o máximo de deputados possível.
Todos parecem estar cientes de que se trata de um momento crítico na vida coletiva francesa. E, talvez por isso, nos sete dias entre as eleições de dia 9, que tudo espoletaram, e este domingo, 16 de junho, data-limite para a apresentação das listas, assistiu-se a uma balbúrdia política comparável às escaramuças que envolviam toda a aldeia gaulesa de Astérix e Obélix.
"Purga" à esquerda
No passado dia 10, segunda-feira, à noite, os partidos de esquerda França Insubmissa, Os Ecologistas, o Partido Comunista Francês e o Partido Socialista chegaram a acordo para apresentar candidatos comuns em cada círculo eleitoral de forma a limitar a dispersão de votos e facilitar a eleição de deputados. Chamaram a esta “coligação” Nova Frente Popular, nome que ecoa o da frente de esquerda formada nos anos 1930, em França, para travar a ascensão do fascismo do entreguerras. O paralelismo histórico espelha a ideia de que está muito em jogo para a esquerda (e também para a direita democrática francesa), o que se notou imediatamente nas ruas.
Na sexta-feira – três dias depois do anúncio, portanto – as listas do novo “muro” de contenção da extrema-direita francesa eram apresentadas e tinham ausências de peso: excluíam personalidades-chave do partido França Insubmissa, contestatárias do seu atual líder, Jean-Luc Mélénchon. Segundo o Le Monde, os deputados Alexis Corbière, Raquel Garrido, Hendrik Davi, Danielle Simonnet e Frédéric Mathieu descobriram, às onze da noite de sexta-feira, que já não iriam concorrer a um lugar no parlamento. Não tardou até que se começasse a falar de uma “limpeza” de Mélénchon.
“Tudo isto é uma purga, um castigo político que só tem um responsável: Jean-Luc Mélenchon e o seu ajuste de contas (…) Não é possível tornar uma sociedade mas democrática com métodos destes. Nem as empresas privadas agem desta forma”, afirmou Alexis Corbière, antigo porta-voz de Mélénchon, com quem se incompatibilizou em 2022. O “castigo”, alegam os excluídos, deve-se ao facto de todos eles se terem distanciado ruidosamente, numa guerra muito pública, da linha seguida pelos próximos do atual líder
Líderes de outros partidos participantes na Nova Frente Popular, como os Ecologistas e o Partido Socialista, mostraram-se desagradados com esta decisão, cita o jornal “Les Échos”. Outras vozes notaram, e criticaram, o facto da comissão eleitoral ter afastado estes “históricos” do partido, ao mesmo tempo que recuperava para a vida política um candidato como Adrien Quatennens, ex-alto quadro do França Insubmissa, acusado de violência doméstica pela ex-mulher e condenado, em 2022, a quatro meses de prisão com pena suspensa.
Quatennens, muito próximo de Mélenchon, sob uma chuva de críticas vindas de dentro e fora da coligação, decidiu este domingo desistir da sua candidatura e deixar o caminho aberto a outro candidato de esquerda mais consensual no seu círculo.
Direita barrica-se
À direita também há confusão. O Reagrupamento Nacional, com propostas xenófobas, racistas e securitárias, parece ser, depois do dia 9, a força política hegemónica neste lado do espetro político. Outros partidos como os Republicanos, herdeiros do antigo partido de centro-direita UMP, e o Reconquista!, do chauvinista Éric Zemmour, ainda mais à direita do que o Reagrupamento Nacional, passaram os últimos dias a tentar posicionar-se face ao partido de Le Pen.
O líder dos Republicanos, Éric Ciotti, anunciou unilateralmente, na terça-feira, numa entrevista televisiva, que o seu partido iria aliar-se com o Reagrupamento Nacional, para “evitar o perigo dos Insubmissos amanhã poderem ter uma maioria na Assembleia Nacional”; uma aliança a pensar em “todos aqueles que se identificam com as ideias e os valores de direita”.
Conta o “Le Monde” que o anúncio provocou furor e indignação públicas entre os barões desta força política gaullista, que já elegeu Jacques Chirac e Nicolas Sarkozy para a presidência de França; eles próprios duas “frentes” de direita contra a ascensão de Le Pen. Ciotti não se ficou: recusou-se a voltar atrás no anúncio e trancou-se na sede do partido.
Ao mesmo tempo, os dirigentes reuniam-se, num palacete muito perto do quartel-general dos Republicanos e decidiram, por unanimidade, a destituição de Ciotti do cargo de líder. Ciotti foi à justiça alegar que a sua destituição não era válida - e um tribunal de Paris já lhe deu razão.
Imagens como a de Valérie Pecresse, a candidata à presidência da República pelos Republicanos nas presidenciais de 2022, que chegou à sede a arregaçar as mangas preparando-se para escorraçar Ciotti do edifício; ou de Annie Genevard, a única dirigente que na posse de uma chave sobressalente, a abrir a porta da sede, provocaram uma enxurrada de memes e de comentários na Internet pelo caricato da situação.
Zemmour, o último a saber
Entretanto, ainda mais à direita, também há cisões internas. A dirigente Marion Maréchal, sobrinha de Marine Le Pen, trânsfuga do Reagrupamento Nacional depois de desentendimentos políticos com a tia, criticou numa conferência de imprensa Éric Zemmour, o líder do Reconquista!, partido de extrema-direita onde entretanto se filiou, discordando da estratégia de apresentar candidatos próprios e anunciando que iria apoiar e votar nos candidatos do Reagrupamento Nacional.
Maréchal, que foi eleita no dia 9 pelo Reconquista! para o Parlamento Europeu e que, entretanto, fora incumbida, numa tentativa sem sucesso, de negociar uma aliança entre os seus dois partidos, o antigo e o novo, foi alvo, por sua vez, de ataques histriónicos de Zemmour que, numa entrevista televisiva, brilhou no papel de marido traído.
Segundo ele, a sobrinha de Marine superou o “recorde do mundo da traição”, “chegou ao seu objetivo, o de se excluir deste partido que sempre desprezou”, chamou-a de “mentirosa”, disse que estaria apenas a tentar “conseguir uns lugares miseráveis para os amigos”, e mostrou-se convencido de estar “rodeado de profissionais da traição”. E expulsou-a do partido, tal como aos seus três apoiantes, também eles eleitos no dia 9 para Estrasburgo.
“Fui eu quem a nomeou cabeça de lista, foram os meus militantes que fizeram esta campanha. Os militantes levaram-na às costas, contribuíram com o seu dinheiro, tudo por ela. E, ao fim de 48 horas, ela trai estas pessoas, abandona-as como se fossem cães ou meias velhas”, bradou Zemmour, citado pelo “Le Figaro”, o jornal onde, curiosamente, foi durante mais de 25 anos, e até 2021, jornalista.
Porquê a necessidade de coligações?
O sistema francês de eleição de deputados para a Assembleia Nacional, a câmara baixa do parlamento, exige que os candidatos a deputados tenham a maioria absoluta dos votos e pelo menos 25% dos votos no seu círculo. Os que não alcançarem esta fasquia na primeira volta, a 30 de junho, vão a escrutínio numa segunda volta, marcada para 7 de julho.
Nesta ronda, participam os dois candidatos mais votados e outros que tenham conseguido uma votação superior a 12,5% do número de eleitores recenseados nesse círculo. Este sistema desencoraja o aparecimento de vários candidatos em cada círculo e motiva a criação de coligações táticas.