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Espanha: direita normaliza Vox a pensar em Governo de coligação após as legislativas

O líder do PP, Núñez Feijóo, que encabeça as sondagens, não faz tabu: “Onde precisarmos do seu voto, é lógico que o Vox esteja no Governo”. Já assim foi na sequência das eleições regionais

ISABEL INFANTES/REUTERS

O processo de normalização do partido de extrema-direita Vox nas instituições espanholas é imparável. São indício disso as negociações para formar governos em comunidades autónomas e municípios, em muitos dos quais os votos do Vox são imprescindíveis para investir autarcas do Partido Popular (PP, centro-direita).

As sondagens também mostram certa redução do repúdio do eleitorado pela extrema-direita. Os dados tornam mais plausível um Executivo de coligação PP-Vox na sequência das eleições legislativas do próximo dia 23 de julho. Após muitas vacilações, Alberto Núñez Feijóo, olhado por boa parte do país como futuro primeiro-ministro, clarificou a sua posição: “O meu critério é que onde precisarmos do ‘sim’ do Vox, é lógico que o Vox esteja no Governo”.

Em Espanha a investidura do chefe do Governo acontece no Congresso dos Deputados. Numa primeira ronda exige-se maioria absoluta (176 votos a favor), na segunda basta que haja mais parlamentares a votar ‘sim’ do que ‘não’.

Faltando ainda definir os governos regionais de Múrcia e Aragão, está desenhado o mapa do poder do Vox no espaço autonómico e municipal. Há coligações PP-Vox na Extremadura e na Comunidade Valenciana, apoio externo nas ilhas Baleares (em troca de um programa de governo comum cujos 100 pontos incluem as principais exigências da extrema-direita) e mantém-se firme o acordo assinado há ano e meio em Castela e Leão, que teve eleições antecipadas em 2022.

PP obteve a presidência graças aos votos do Vox em 53 câmaras

A nível municipal, os pactos levaram o Vox a dominar 30 autarquias importantes e a ter presença importante em concelhos tão relevantes como Valladolid, Gijón, Elche (Alicante), Móstoles e Alcalá de Henares (ambas na província de Madrid). Em 53 câmaras onde não foi a força mais votada, o PP obteve a presidência graças aos votos do Vox, que tem mais de 1600 vereadores em toda Espanha. Ao contrário do que sucede em Portugal, no país vizinho o vencedor das autárquicas não é automaticamente presidente da Câmara.

Em Múrcia e Aragão discute-se a formação de executivos sem o Vox, a quem o PP cedeu as presidências dos respetivos parlamentos. Em Múrcia há risco de rutura e repetição das eleições. Já Aragão estará mais perto de um acordo, com a fórmula das Baleares (apoio externo) no horizonte.

A exigência do Vox de participar nos governos regionais segue o modelo adotado em Valência. Nessa importante região, que a direita arrebatou a uma aliança de socialistas e esquerda radical e local, dirigentes do Vox ocuparão as pastas da Agricultura (que tem competências ambientais), Justiça e Interior e Cultura, esta última nas mãos de um ex-toureiro, Vicente Barrera, em tempos célebre matador. A presidência do Parlamento valenciano ficou, com o OK de Feijóo, nas mãos de Llanos Masó, ultracatólica e ativista contra o aborto, que nega a violência de género e critica o sistema de poder autonómico.

Na área municipal, o Vox tem procurado assumir pelouros da Família, Assuntos Sociais e Cultura. Na maioria dos municípios onde se implantou, suprime — se tiver poder para tal ou ao abrigo de pactos com o PP — competências nas áreas de Igualdade, Desenvolvimento Sustentável e Ambiente.

Regresso de votantes conservadores ao PP

É assim que o partido chefiado por Santiago Abascal marca o seu território ideológico: políticas antiaborto, negação da violência machista e das alterações climáticas; rejeição da política migratória de portas abertas e dos direitos e símbolos visíveis da comunidade LGTBQI+; exigência de revisão drástica de leis sociais, como as da liberdade sexual e da eutanásia.

Durante as Festas do Orgulho LGTBQI+, que no passado sábado reuniram em Madrid mais de milhão e meio de manifestantes, muitos vindos de países estrangeiros, o Vox repetiu que iria vetar o casamento entre pessoas do mesmo sexo (legal desde 2005 e a cargo dos municípios), proibirá a adoção por casais homossexuais, restringirá os direitos dos trans e eliminará as operações de mudança de sexo no sistema público de saúde, a proibição das terapias de conversão e a educação sexual nas escolas. Na área da Agricultura, o partido de extrema-direita impõe o alargamento do regadio, a autorização de determinados pesticidas banidos e a redução das normas ambientais.

Todas estas posições, viabilizadas pelos bons resultados do conjunto das forças de direita nas eleições de maio, consolidam o Vox como terceira força política espanhola, em concorrência com a plataforma Somar, para onde convergem as formações à esquerda do Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE, centro-esquerda). A presença nas instituições contribui para a normalização social da extrema-direita, em redor do qual se tentava, outrora, erguer um cordão sanitário. O anterior líder do PP, Pablo Casado, falou assim do Vox, no Parlamento, em 2020: “Dizemos ‘não’ a este engenho antiespanhol que o Vox patrocina com as suas políticas cainitas [de Caim, motivadas pelo ódio]”.

A primeira vez que concorreu a eleições, em 2015, o partido fundado um ano antes por Abascal, dirigente médio do PP no País Basco, obteve 0,23% dos sufrágios. Em 2019 apoiaram-no 3,6 milhões de espanhóis (15,1%). Tem 52 deputados no Congresso e, a crer nos estudos de opinião, ficará com 34/35 depois de 23 de julho. A queda nas sondagens dever-se-á à hipótese de Governo PP-Vox, que mobiliza os mais progressistas, trava a transferência de votos da esquerda para a direita e faz regressar muitos votantes conservadores ao PP.

José Pablo Ferrándiz, diretor de Opinião Pública e Estudos Políticos da empresa Ipsos, especializada em análises de mercado, assegura ao Expresso que “o Vox já não mete medo aos eleitores de direita. Feijóo tem o terreno adubado para não ser penalizado pelos pactos que está a assinar com o Vox”. Considera que “a extrema-direita não vai ocupar o espaço que ocupou noutros países, onde a xenofobia, o fenómeno migratório ou o antieuropeísmo são sentimentos muito mais potentes do que em Espanha”.

Fenómeno europeu alastrou-se na Europa

Andrea Rizzi, analista de assuntos internacionais do diário “El País”, explica como o fenómeno se alastrou na Europa: a Finlândia acaba de empossar um Executivo de direita clássica e extrema-direita; na Suécia governam conservadores com apoio externo da extrema-direita; a Alternativa para a Alemanha aparece em segundo nas sondagens, com 20%; os Irmãos de Itália chefiam o Governo transalpino; em França, Marine Le Pen sobe em intenções de voto; e na Hungria e na Polónia os partidos do poder, da direita radical, consolidam as suas posições.

Luis Antonio Rendueles, especialista em metodologia dos Estudos de Opinião, justifica: “Na direita espanhola domina o desejo de expulsar o primeiro-ministro socialista Pedro Sánchez, muito desgastado pelos pactos e cedências com os independentistas catalães. Isso está acima de qualquer outra consideração. Foi o próprio Feijóo que facilitou essa tolerância social à extrema-direita, por ter patrocinado e dado a bênção a acordos como o Vox em regiões como Castela e Leão, Comunidade Valenciana, Extremadura e mais de 100 concelhos”.

No terreno oposto, Érica Bejerano, investigadora da firma 40dB, que faz sondagens para o progressista “El País”, defende que 37% da população receia que o Vox ocupe ministérios, ao passo que só 12% se declaram “satisfeitos” e 11% “tranquilos”.

O politólogo holandês Cas Mudde, uma das pessoas que mais sabem sobre movimentos de extrema-direita na Europa, esteve recentemente em Barcelona para dar conferências. Tem uma explicação para os bons resultados do Vox nas eleições passadas: “É apenas uma atualização; o eleitorado potencial do Vox move-se entre os 10% e os 20%, e estas eleições confirmam, simplesmente, esse apoio. Não há mudança fundamental. O Vox é o terceiro partido espanhol e há anos que é um potencial sócio de coligação para o PP”.