Europa

“O mundo está a mudar e não a favor da Europa”: relatório alerta para ameaça de múltiplas guerras e alianças

Há uma “dissonância” entre a forma como o Ocidente e a opinião pública global olham para o mundo. A retórica do bipolarismo está obsoleta e, nesta nova realidade, a Europa tem de se adaptar e alargar alianças

Sean Gallup

Quatro em cada dez pessoas fora da Europa acreditam que a União Europeia vai colapsar nos próximos 20 anos. A opinião é partilhada por um terço dos europeus (embora metade discorde).

Isto, acreditam os investigadores do think tank European Council on Foreign Relations (ECFR), é um sinal de que o mundo não vê na Europa uma grande potência. “Vista de fora, ‘uma UE geopolítica’ continua a ser pouco mais do que um slogan. E, quando chega a hora, as pessoas voltam-se para os EUA em busca de garantias definitivas”, aponta o novo estudo do ECFR- publicado esta quarta-feira no âmbito do encontro entre Joe Biden e Xi Jinping

Só que a ordem mundial está a transformar-se (e com ela a opinião pública). “Os resultados do inquérito sugerem que o domínio ocidental do sistema internacional, bem como o enquadramento bipolar da principal política externa de Washington e Bruxelas, não se manterão num contexto de multipolaridade crescente.” Neste novo contexto, “nenhuma grande potência será capaz de impor os seus desejos ao resto do mundo” e isso implica adaptações.

“O mundo está a mudar – e não a favor da Europa”, sintetiza Ivan Krastev, presidente do Centro de Estratégias Liberais e um dos coautores do relatório. Mark Leonard, diretor do ECFR e outro dos coautores, corrobora: “os resultados do nosso inquérito sugerem que, em vez de se agarrar ao mundo irénico de ontem, a UE precisa de compreender as novas regras de um jogo ‘à la carte’, no que diz respeito às relações internacionais, e procurar novos parceiros para as questões fundamentais que o nosso mundo, devastado pela guerra, enfrenta”.

Um jogo de poderes entre Ocidente, China e Rússia

Apesar do pessimismo generalizado quanto ao seu próprio futuro (que afeta 47% dos cidadãos norte-americanos e 59% dos europeus), “os países ocidentais são, numa enorme variedade de assuntos, muito mais atrativos do que muitos comentadores ocidentais julgam”.

São, por exemplo, o destino mais cobiçado para viver. Caso tivessem de emigrar, a maioria dos inquiridos - em países tão diversos como Coreia do Sul (75%), Arábia Saudita (62%) e Turquia (71%) - preferiria mudar-se para Europa ou EUA. Em contrapartida, menos de 5% dos cidadãos de países não-ocidentais prefeririam viver na China.

Ocidente como destino preferencial para imigração


O mesmo acontece quando se pergunta sobre direitos humanos. A esmagadora maioria dos países diz rever-se mais na abordagem dos EUA e aliados do que na da China e seus parceiros. Esta é a resposta maioritária até em países como a Arábia Saudita (47%) ou Turquia (51%).

Assim, apesar da falta de fé no projeto europeu, “a Europa continua a ser muito atrativa em termos do seu modo de vida, prosperidade, sociedades e sistemas de valores relativamente abertos, tolerantes e diversos”, aponta o relatório. “A China não compete com o Ocidente em matéria de soft power [poder de influência] - nem a Rússia.”

“O que é amplamente considerado que falta à Europa é o hard power [poder coercivo] correspondente para proteger os interesses e valores europeus num mundo de grandes e médias potências que competem ferozmente e de guerras.”

Em contrapartida, em matéria de hard power, os EUA são os parceiros prediletos quando está em causa a segurança. Esta preferência é mais ténue em países como Indonésia (38%) ou Turquia (43%), mas muito mais significativa em países como a Coreia do Sul (80%) e Índia (70%).

EUA como parceiro de segurança preferido


O Ocidente só é preterido face à China na vertente económica. Entre os países não-ocidentais, Brasil (50%) e Índia (65%) preferem cooperar com os EUA. Rússia (74%), Arábia Saudita (60%), África do Sul (60%), Indonésia (53%) e Turquia (50%) preferem parcerias com China. Mesmo 29% dos europeus são favoráveis a uma maior atividade económica da China nos seus países.

China como parceiro comercial preferido


Feitas as contas, se tivesse mesmo de escolher um bloco, a maioria dá preferência ao Ocidente. Só a Rússia diverge, sendo a única a optar pela China. Acontece que este bipolarismo está obsoleto.

Um mundo que recusa dividir-se em blocos

O diagnóstico traçado pelo relatório é claro. Há uma “dissonância” entre a forma como o Ocidente e a opinião pública global olham para o mundo. A Europa e EUA veem um mundo de “rivalidade entre dois sistemas políticos e ideológicos diferentes”, mas esta visão diverge da forma como as pessoas inquiridas pelo ECFR em 21 países “estão realmente a pensar o mundo”.

“Para outros países, as mudanças que parecem desordem para os legisladores ocidentais podem parecer uma reordenação da qual podem beneficiar.” Neste “cenário geopolítico complexo onde grandes e médias potências concorrentes, fustigadas pelas tendências de fragmentação e polarização, se recusam a aceitar apenas um conjunto fixo de parcerias”, ser “soberano significa ter escolhas”.

Assim, a atratividade do Ocidente “não se traduz em alinhamento político”. Neste “mundo à la carte”, EUA, Europa e China “não são vistos como modelos políticos competitivos que é preciso imitar, mas como outras grandes potências com quem cada país pode cooperar ou competir – dependendo do tempo e da questão em causa”.

Neste contexto, “as sondagens sugerem que é altamente improvável que o mundo se divida em dois campos bem definidos”.

Um mundo desalinhado em relação à Ucrânia

Para os autores, nada ilustra tão bem esta relutância com o alinhamento total como as questões de guerra e paz. Segundo aponta o relatório, o Ocidente tinha esperança que a guerra na Ucrânia mobilizasse para a “defesa da ordem liberal pós-Guerra Fria”.

Só que isto não aconteceu. A invasão da Ucrânia mostrou que o resto do mundo não vê a guerra como o Ocidente. Fora dos EUA e Europa, a maioria acredita que o conflito deve acabar o mais rapidamente possível, mesmo que para isso Kiev tenha de ceder territórios. A ideia de continuar a auxiliar a Ucrânia durante o tempo que for preciso reúne igualmente pouco apoio fora do Ocidente.

Ucrânia trava guerra por procuração?


Por outro lado, se na Europa (56%), EUA (58%), Coreia do Sul (67%) e Brasil (37%) a Rússia é vista como o maior obstáculo à paz, o mesmo não sucede num número significativo de países. China (82%), Rússia (71%), Arábia Saudita (57%), Indonésia (46%), Turquia (49%) e Índia (39%) consideram os EUA, a UE ou a Ucrânia como principais obstáculos à paz.

Mais, fora da Europa e EUA, a ideia predominante é que a Rússia sairá vencedora deste conflito. E há uma forte correlação entre esta crença e a fé dos inquiridos na resiliência do projeto europeu e da democracia norte-americana.

Desta forma, o desfecho deste conflito - assim como o de Israel - terá um impacto desproporcional para a Europa e não só porque uma vitória russa seria uma “ameaça existencial”. “A própria credibilidade da UE está em jogo no resultado da guerra na Ucrânia”, conclui o relatório.

Um mundo de múltiplas guerras e alianças

Além dos conflitos em curso, o inquérito sonda a opinião pública sobre um terceiro foco de tensões, Taiwan: 52% dos chineses, 39% dos americanos e 35% dos europeus consideram provável que os EUA e a China entrem em conflito militar direto nos próximos cinco anos, motivado pela reivindicação chinesa daquele território insular.

E também aqui é notório o não alinhamento. Neste cenário, 62% dos europeus optariam pela neutralidade e só 23% estariam prontos a apoiar totalmente os EUA. A maioria (51% dos americanos e 75% dos europeus) opõe-se ao envolvimento das forças armadas dos seus países na hipótese de uma futura guerra.

EUA e China em conflito por Taiwan


Neste “mundo de múltiplas guerras e de alianças em constante mudança”, o armamento nuclear reúne maiores consensos. “Muitas pessoas apoiam o acesso dos seus países às armas nucleares, talvez vendo isto como a única forma segura de proteger a sua soberania nacional neste mundo perigoso. O facto da Ucrânia ter desistido das suas armas nucleares no Memorando de Budapeste de 1994 em troca de garantias de segurança EUA, Rússia e Reino Unido para depois ser brutalmente invadida por um dos signatários desse memorando pode muito bem ter funcionado como mais um catalisador para a proliferação nuclear.”

Soluções para a Europa

Para os europeus, a rutura da ordem pós-guerra fria traduz-se numa “crise de identidade”, em que as esperanças de um “continente verdadeiramente de paz” que “iria moldar o resto do mundo” foram aniquiladas.

Sobra uma Europa dividida entre “estratégias rivais”, a daqueles que se agarram ao bipolarismo e a dos que defendem a “autonomia estratégica”. Só que, considera o relatório, nenhuma serve totalmente o continente.

Em alternativa, argumentam, a Europa deve procurar uma “independência estratégica”, alargando as suas parcerias económicas e investindo nas dimensões militares e de segurança.

“Em vez de se apegarem a um antigo menu de alinhamentos, os decisores políticos europeus têm de procurar novos parceiros em questões cruciais neste mundo à la carte”, conclui o relatório. “Qualquer abordagem estratégica deve começar por analisar o mundo tal como ele é, e não como gostaríamos que fosse. Ao olhar para a forma confiante como potências médias como a Turquia, a Índia, o Brasil, a África do Sul e a Arábia Saudita se comportam atualmente no panorama mundial, a UE deveria tirar notas e procurar alargar o âmbito das suas alianças”, acrescenta Ivan Krastev.