EUA

Entre comício político e missa campal: como a cerimónia fúnebre de Charlie Kirk se tornou a apoteose MAGA do ano

A vida de Charlie Kirk foi comparada com a vida de Jesus Cristo e feitas promessas de um regresso da América cristã. A cerimónia fúnebre do ativista conservador, assassinado durante um evento público numa universidade de Utah, serviu a Trump e a várias figuras do seu gabinete ministerial como justificação para o ataque às vozes que não concordam com a sua marca de conservadorismo

Donald Trump, Presidente dos EUA, acompanhado pela viúva de Charlie Kirk na homenagem ao influencer nacionalista norte-americano
Win McNamee

As notícias que chegam dos Estados Unidos tornam difícil afastar a ideia da frase final do romance de Philip Roth, “Conspiração contra a América”. “Escravizaram a América com truques! Ter capturado a mente da maior nação do mundo sem proferir uma única palavra de verdade! Oh, o prazer que devemos estar a proporcionar ao homem mais malévolo da Terra!”, diz, já perto do fim do livro, Seldon Wishnow, um rapaz deixando orfão pela purga antissemita conduzida numa América que acabou de eleger um Presidente nazi.

Cada vez há menos pontos de ligação entre o que Trump diz e a realidade confirmável. O discurso de quase 50 minutos que fez este domingo perante quase 70 mil pessoas, na cerimónia fúnebre de Charlie Kirk, no State Farm Stadium, em Glendale, Arizona, foi mais um exemplo desse divórcio.

A grande diferença não é entre a esquerda e a direita, mas antes entre, por exemplo, as pessoas que acreditam que um médico sabe mais de saúde do que um leigo - e as que não. As teorias da conspiração têm servido de adubo à revolução MAGA - e o próprio Charlie Kirk encabeçou muitas delas. Apesar de o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, ter dito que o influencer conservador tinha sido “um grande defensor de Israel e uma figura alta da cultura judaico-cristã”, na verdade não faltam no repertório de Kirk exemplos de declarações antissemitas, proferidas mesmo depois do 7 de outubro. Quando Taylor Swift revelou estar noiva, Kirk escreveu: “Sujeita-te ao teu marido, não és tu que mandas”.


Apoiantes do presidente Donald Trump reúnem-se para homenagear o ativista conservador assassinado Charlie Kirk
Anadolu

Nada que tenha demovido as dezenas de milhares de pessoas que permaneceram horas à porta do estádio (alguns pernoitaram nas imediações) para garantirem um lugar na cerimónia. As fotografias e os vídeos que foram sendo divulgados pelos participantes e pelos meios de comunicação presentes mostram uma multidão vestida com as cores da bandeira norte-americana, muitos chapéus MAGA, outros com o nome de Donald Trump, bandeiras de apoio ao Presidente, t-shirts com a fotografia tirada poucos segundos depois da tentativa de assassínio que sofreu, em Butler, Pensilvânia, antes da eleição. Já lá dentro, relata a BBC, “o ambiente assemelhava-se a um comício político numa mega-igreja”.

Antes dos discursos programados, tocaram nomes conhecidos do pop-rock cristão, entre eles Brandon Lake ou Cody Carnes, ambos com músicas e vídeos com mais de cem milhões de downloads no Spotify. A palavra “mártir” figurou em quase todos os discursos, tal como a comparação entre o caminho de Kirk e o caminho de Cristo. “Abateram um mártir, o seu poder cresce. E é isso que vemos”, disse o podcaster de direita Benny Johnson. “O poder do martírio, é assim que Deus e Cristo fazem avançar o seu reino, e é isso que Ele está a fazer agora com Charlie Kirk”. Robert F. Kennedy Jr., ministro da Saúde, lembrou: "Cristo morreu com 33 anos, mas mudou a trajetória da História. O Charlie morreu com 31 anos e agora também mudou a trajetória da História”.

Na rede social X, a Casa Branca colocou uma fotografia de Donald Trump, de costas para o fotógrafo e de frente para a multidão, com a legenda: “Este é o ponto de viragem”, uma adaptação do nome da associação que era liderada por Charlie Kirk e agora passa para as mãos da sua viúva, Erika.


“Sei que falo por todos os que estão aqui hoje quando digo que nenhum de nós alguma vez esquecerá Charlie Kirk”, disse o Presidente Donald Trump, “e agora também a História não o esquecerá”. Trump foi o último a falar, logo depois de Erika Kirk, que optou por uma mensagem de repúdio à violência, acabando até por perdoar publicamente o alegado assassino do seu marido, o que provocou uma enorme onda de emoção e aplausos na arena. “A resposta ao ódio não é o ódio”, acrescentou. “A resposta que conhecemos do Evangelho é o amor, é sempre o amor, amor pelos nossos inimigos e amor por aqueles que nos perseguem”, disse Erika Kirk, que está já a ser apontada como a próxima estrela do partido republicano. Trump não seguiu o seu exemplo e prometeu uma luta incansável contra “as forças da esquerda”, apontadas por vários republicanos próximos do Presidente como as culpadas pelas ações do atacante.

“Agitadores a soldo” e “maníacos de extrema-esquerda”

Não há qualquer prova de que o alegado assassino tenha agido a mando de qualquer organização “de esquerda”. Mais de 10 dias após a morte de Kirk, a polícia não reuniu qualquer ligação entre Tyler Robinson, o suspeito, e qualquer grupo político. escreveu a NBC. Foram, sim, encontradas expressões “Apanha esta, fascista!” e “Bella ciao”, uma canção antifascista italiana, escritas nos cartuchos, além de algumas mensagens onde Robinson expressava ódio pelas opiniões de Kirk.

Mais uma vez sem apresentar provas, Trump disse que as pessoas que iam aos comícios de Kirk para lhe fazerem perguntas não eram verdadeiros opositores políticos mas sim “agitadores a soldo”. O Departamento de Justiça, avisou, está a “investigar redes de maníacos da extrema-esquerda que financiam, organizam, alimentam e perpetram violência política”. Num outro momento do discurso, atirou à chamada cultura woke, que defende: “Algumas das mesmas pessoas que vos chamam nomes por usarem o pronome errado rejubilaram com o assassinato de um pai com dois filhos lindos e pequenos”, lamentou Trump.

Rebecca Noble

Os principais nomes da Administração Trump, incluindo o vice-presidente, JD Vance, e o ministro da Defesa, Pete Hegseth, o filho de Trump e amigo pessoal de Kirk, Trump Júnior e um dos mais influentes conselheiros da Administração, Stephen Miller, de longe o mais combativo entre a lista de oradores, estiveram presentes, até porque - como Vance admitiu - o movimento conservador de Kirk, Turning Point USA, foi um dos principais pilares da vitória republicana. Criou as bases para uma nova geração de conservadores que, com toda a probabilidade, vão escolher candidatos republicanos em futuras eleições.

Autismo, Chicago, ódio

Por vezes com os olhos no teleponto, outras em modo de improviso, Trump foi misturando promessas eleitorais com elogios a Kirk, muitas vezes encadeando as coisas, ou utilizando uma frase de Kirk para puxar os temas que lhe dão votos. A certo ponto, para se referir ao uso de forças federais para policiar cidades democratas, Trump disse que um dos últimos pedidos de Kirk foi para que ele tentasse “salvar Chicago” e é “isso mesmo” que Trump promete agora fazer. Mais à frente, e sem ligação aparente ao momento de luto em que participava, Trump aproveitou para dizer que, esta segunda-feira, na Casa Branca, seria feito um grande anúncio: “Acho que encontrámos uma resposta para o autismo. Que tal? Autismo. Amanhã vamos falar na Sala Oval da Casa Branca sobre o autismo”, disse o Presidente.

Matthew Boedy, professor assistente na Universidade do Norte da Geórgia, especializado em retórica religiosa e autor de um novo livro sobre Charlie Kirk e o nacionalismo religioso, afirmou ao “New York Times", numa análise sobre o evento, que a mensagem não foi para “alargar a tenda de votos”, antes para um “aprofundamento da base, galvanização pessoas que já concordam” com a retórica de Trump. Retórica, em alguns momentos, muito pouco preocupada com o momento de enorme divisão que o país vive. “Ele [Kirk] não odiava os seus opositores, queria o melhor para eles”, disse Trump. “É aí que eu discordo do Charlie. Eu odeio os meus opositores, e não quero o melhor para eles, lamento”, acrescentou, pedindo desculpa à viúva de Kirk por não a acompanhar nas palavras compassivas do seu discurso. “Não está no meu ADN”.

Bem antes desta cerimónia, Stephen Miller, vice-chefe de gabinete de Trump e há muitos anos uma das vozes mais extremistas entre os apoiantes de Trump, já tinha dito, sem provas, que o assassínio de Kirk tinha sido “organizado”. Sob a batuta de Miller, os republicanos no Congresso sugeriram retirar o estatuto fiscal a organizações de esquerda, revogar as cartas de condução de pessoas que fazem comentários insensíveis sobre Kirk e bani-las das redes sociais. “Eles não conseguem imaginar o que despertaram”, disse Miller. “Aqueles que tentam incitar à violência contra nós, aqueles que tentam fomentar o ódio contra nós, o que é que têm? Não têm nada. Vocês não são nada. Vocês são maldade. Vocês são inveja. Vocês são ciúme. Vocês são ódio. Vocês não são nada. Não podem construir nada. Não podem produzir nada. Não podem criar nada. Nós é que construímos. Nós é que criamos. Nós é que elevamos a humanidade.”

Oposição dos conservadores

Republicanos que vão desde Karl Rove, antigo conselheiro de George W. Bush, até ao senador Ted Cruz passando pelo comentador e ex-pivot da Fox News Tucker Carlson manifestaram preocupação quanto à utilização da morte de Kirk para atacar rivais políticos ou restringir a liberdade de expressão, receando que isso estabeleça um precedente perigoso que possa ser usado contra os republicanos quando os democratas estiverem no poder. “Se o governo começar a dizer: ‘Não gostamos do que os media disseram. Vamos bani-los do ar se não disserem o que queremos’, isso acabará por correr mal para os conservadores”, afirmou Cruz no seu podcast de sexta-feira.

A procuradora-geral dos EUA, Pam Bondi, culpou “radicais de esquerda” pelo tiroteio e disse que “serão responsabilizados”. “Vamos, não tenham dúvidas, perseguir-vos, se estiverem a visar alguém com discurso de ódio. E isso aplica-se a ambos os lados”. As suas declarações geraram uma reação negativa em todo o espectro político, já que mesmo o discurso de ódio está protegido pela muito ampla Primeira Emenda da Constituição, onde está inscrita a liberdade de expressão.

Bondi tentou voltar um pouco atrás com as palavras, escrevendo nas redes sociais que iriam focar-se no “discurso de ódio que se transforma em incitamento à violência”, mas o dano já começou a ser feito. Pelo menos 60 docentes já recorreram à Associação Nacional de Professores Universitários queixando-se de retaliações diretamente ligadas a comentários sobre Charlie Kirk. Entre as retaliações estão casos de despedimento e revogação de títulos académicos.