EUA

Biden, o bom professor: ensinar e repetir, ensinar e repetir (o primeiro discurso do Presidente eleito)

Joe Biden pôde finalmente agradecer a vitória pela qual tanto esperou. Foi fazendo discursos de apaziguamento durante quase uma semana à espera deste momento. Mas os temas mantêm-se: é preciso unir a América, são todos americanos, não há estados azuis nem vermelhos, ele será o Presidente de todos os norte-americanos. O maior desafio, diz, é que os democratas não pensem que esta vitória é um fim em si mesmo

JIM LO SCALZO

Joe Biden entra a correr em palco. Kamala Harris cumprimenta-o com os punhos, assim manda a pandemia que tomou conta de 2020, e parece que alguma corrente de energia passou dela para ele. O Biden que apareceu perante a multidão que o esperava agitando bandeiras e buzinando de dentro dos carros veio com uma força na voz e na postura que não se viu nem nos debates nem em qualquer das pequenas intervenções que foi fazendo ao longo desta semana, enquanto esperava para poder fazer este discurso, o discurso de vitória.

Quase tudo o que ouvimos esta noite Joe Biden já tinha dito. As mensagens, quando não foram literalmente as mesmas (“não há nada que não tenhamos conseguido fazer quando decidimos fazê-lo em conjunto”, uma frase que usou já muitas vezes), concentraram-se à volta de um mesmo objetivo: a América passou muito tempo dividida e com ele essa retórica do um contra o outro acabou.

Resta saber se toda a gente o está a ouvir, se toda a gente está disponível para aceitar a derrota de um Trump que conseguiu uma quantidade enorme de votos (mais de 70 milhões), votos de norte-americanos que hoje estão no mínimo desiludidos e no máximo revoltados.

No fim do discurso, o filho mais velho de Donald Trump tentou inflamar, através das redes sociais, ainda mais essa revolta que necessariamente existe quando nos sentimos derrotados nas nossas convicções. "Há 70 milhões de republicanos furiosos e nenhuma cidade a arder", escreveu Donald Trump Jr. no Twitter.

Uma breve leitura pelos comentários ao tweet mostra que há muito quem esteja disposto a lutar por Trump. Joe Biden está empenhado em que isso não aconteça e o medo que sempre expressou que o “espírito da América” estivesse a quebrar provou-se real. Agora o caminho é o de tentar sarar as feridas. A essa ferida mais espiritual juntou-se uma bem mais real, física: a da covid-19, que já matou mais de 200 mil pessoas.

O Presidente eleito abriu o seu discurso em Wilmington, Delaware, dizendo que o povo americano fez uma uma escolha sem margem para alegações de ilegitimidade: “O povo desta nação entregou-nos uma vitória clara, uma vitória convincente, uma vitória para nós, o povo. Ganhamos com o maior número de votos alguma vez conseguido por uma dupla presidencial na história do país - 74 milhões”.

Logo depois falou para o que não fazem parte desses muitos milhões: "A todos aqueles que votaram no presidente Trump quero dizer que entendo a vossa deceção esta noite. Eu mesmo já perdi algumas vezes, mas agora é tempo de darmos uma oportunidade uns aos outros”. Como também já tinha dito, e voltou a sublinhar, vai ser um Presidente que não procura dividir mas sim unificar. “Não vejo estados vermelhos e estados azuis, apenas vejo os Estados Unidos”, disse Biden, o bom professor, que ensina e repete a lição aprendida - só assim a mensagem que solidifica na mente de quem ouve.

Sem nunca culpabilizar diretamente Donald Trump, Biden não deixou de criticar o ambiente crispado que o ainda Presidente semeou com as suas intervenções simplistas - quando não incendiárias - contra os democratas, “os radicais de esquerda, os elitistas dos media, da tecnologia, da academia, das grandes empresas” e todos os que estão contra a sua “maioria silenciosa”. "É hora de deixar de lado a retórica dura, baixar a temperatura, de olharmos uns para os outros novamente, de nos ouvirmos novamente, e, para progredirmos, temos de parar de tratar os nossos oponentes como se fossem nossos inimigos. Não somos inimigos, somos americanos”, disse Biden, que continuou o seu raciocínio, mais rápido do que nunca, citando a Bíblia: “Para tudo existe um tempo, um tempo para construir, um tempo para colher, um tempo para semear e um tempo para curar. Este é o tempo para curar na América”.

O perigo agora é que a vitória dos democratas se torne, para os próprios, um fim em si mesmo e que não haja o investimento necessário na resolução de problemas enraizados: a diferença no acesso à educação entre classes e etnias, a violência em algumas cidades, a disparidade de rendimentos, a pandemia dos opiáceos, as alterações climáticas, entre tantas outras coisas.

"A nossa nação é moldada pela batalha constante entre o anjo que temos cá dentro e os nossos impulsos mais sombrios. E o que os presidentes dizem nesta batalha é importante. É hora de os nossos anjos prevalecerem", disse Biden. "Esta noite, todo o mundo está de olhos postos na América e acredito que, no nosso melhor, a América é um farol para o mundo. Lideraremos não apenas pelo exemplo do nosso poder mas pelo poder de nosso exemplo", disse Biden, em mais uma frase que já tinha proferido noutros comícios de campanha.

“Mais uma vez, a América dobrou o arco do universo moral um pouco mais para o lado justiça", finalizou.

No fim, as famílias de Biden e de Harris subiram ao palco e explode no céu um fogo de artifício bastante elaborado, com a perímetro dos Estados Unidos desenhado, os nomes BIDEN e HARRIS e muitas estrelas a imitar a bandeira. Tocou “Sky Full of Stars”, dos Coldplay, uma das bandas favoritas de Beau Biden, o filho de Biden que morreu de cancro em 2015.