África

Espanha e Marrocos selam nova fase de relações com primeira cimeira em oito anos

Espanha e Marrocos selam em fevereiro, com a primeira cimeira desde 2015, a "nova fase" das relações bilaterais, que Madrid se esforçou em recuperar no ano passado, para controlar a imigração ilegal e não perder trocas comerciais e investimentos

Filipe VI e a rainha Letizia visitaram Marrocos em 2019. Uma cimeira entre os dois países não acontece há oito anos
Carlos Alvarez/Getty Images

Espanha e Marrocos selam em fevereiro, com a primeira cimeira desde 2015, a "nova fase" das relações bilaterais. O encontro bilateral está marcado para 01 e 02 de fevereiro para a capital marroquina, Rabat.

"Para Espanha, Marrocos é um vizinho muito importante", explicou à agência Lusa o académico Robert Tornabell, professor emérito e antigo reitor da ESADE Business School, com sede em Barcelona, destacando a importância das águas marroquinas para a pesca espanhola, dos investimentos de empresas de Espanha em Marrocos, do volume das trocas comerciais ou da passagem dos muitos milhares de marroquinos emigrados na Europa pelo território espanhol para irem de férias, através dos barcos que cruzam para Tânger, com pessoas e carros, a partir de Algeciras.

Economia e controlo da imigração

Para além da economia, há ainda a questão do controlo da imigração ilegal, num estreito do Mediterrâneo em que as costas europeias e africanas mais se aproximam, estando de um lado Espanha e Marrocos, mas também nas fronteiras terrestres que os dois países partilham, em Ceuta e Melilla, duas cidades espanholas rodeadas por território marroquino.

Marrocos fez sentir a Espanha o peso de todas estas dimensões das relações bilaterais e de como é o tal "vizinho muito importante" entre abril de 2021 e março de 2022, depois de se ter originado um conflito diplomático por causa de o líder do movimento independentista sarauí Frente Polisário, Brahim Ghali, doente com covid-19, ter sido tratado num hospital espanhol.

A Frente Polisário defende a autodeterminação do povo sarauí e a independência do Saara Ocidental, uma antiga colónia espanhola ocupada por Marrocos há quase 48 anos, no contexto de um processo de descolonização.

"Marrocos, quando houve a crise [diplomática, entre abril de 2021 e março de 2022], proibiu a passagem dos marroquinos que iam de férias desde França ou da Alemanha e atravessavam Espanha até Algeciras e aí apanhavam os ferries até Tânger. Nesse período, iam por Itália. Depois, fechou fábricas espanholas que estavam em Marrocos" e ainda "lhe enviou [a Espanha] milhares de crianças, que atravessaram a fronteira de Ceuta e Melilla", lembrou Robert Tornabell.

"Houve uma crise até que Espanha disse: cheguemos a um acordo", acrescentou o académico, para quem o Governo espanhol teve de "recuperar as relações com Marrocos, o que se conseguiu".

Saara Ocidental continua a ser questão

Para resolver o conflito, Espanha acabou por usar, precisamente, como uma espécie de moeda de troca, a questão do Saara Ocidental.

Em março de 2021, o primeiro-ministro espanhol, Pedro Sánchez, enviou uma carta ao Rei marroquino, Mohamed VI, na qual afirmava que a proposta apresentada por Rabat em 2007, para que o Saara Ocidental seja uma região autónoma controlada por Marrocos, é "a base mais séria, credível e realista para a resolução deste litígio".

Espanha defendeu durante muito tempo que o controlo de Marrocos sobre o Saara Ocidental era uma ocupação e que a realização de um referendo patrocinado pela ONU deveria ser a forma de decidir a descolonização do território.

"Desde que Espanha declarou que não tinha nada a ver com o povo sarauí", "reataram-se as boas relações com Marrocos, houve um novo intercâmbio de embaixadores", "as relações comerciais, de pesca, industriais, de turismo com Marrocos recuperaram-se" e o movimento dos ferries entre os dois países está normalizado, explicou o professor Robert Tornabell.

Para recuperar as relações com Marrocos, que hoje governantes espanhóis e marroquinos não se cansam de repetir que estão numa "nova fase" e até que são "exemplares" no que toca à cooperação para combater a imigração ilegal, Madrid arriscou, em troca, as relações com a Argélia, país tradicionalmente apoiante e defensor da causa sarauí e que mantém diversos conflitos com o vizinho marroquino.

Com a Argélia, o maior fornecedor de gás natural de Espanha, "houve dificuldades", que se tornaram mais evidentes e delicadas no contexto da guerra na Ucrânia.

Durante alguns meses de 2022, Espanha não recebeu gás da Argélia e houve também ameaças das autoridades argelinas em relação a investimentos espanhóis no país.

Espanha parece ter ficado "com boas relações com a Argélia e também com Marrocos, mas é uma situação muito delicada", defendeu o académico do ESADE Business School, que considerou que entre Madrid e Argel há "uma relação difícil", para o que também contribui o crescimento, no último ano, da aproximação argelina à Rússia, a quem compra armas e com quem tem "acordos comerciais que parecem ir mais além do comercial".

Sanchez leva dez ministros consigo

Depois da carta que enviou em março de 2021 ao Rei de Marrocos, Sánchez visitou Rabat e os dois países fizeram uma declaração conjunta, em abril, que normalizou o tráfego fronteiriço e as relações bilaterais.

Nesta declaração, Marrocos reconheceu implicitamente ter fronteiras terrestres com Espanha, ao acordar a instalação de alfândegas em Ceuta e Melilla, territórios que tradicionalmente reclama, considerando-as "cidades ocupadas".

Em 2022, as trocas comerciais entre os dois países aumentaram 33% em relação a 2021 e chegaram aos 10 mil milhões de euros, revelou o próprio Sánchez na semana passada, no parlamento espanhol, para defender, perante a oposição, a importância das boas relações com Marrocos e explicar a realização da cimeira dos próximos dias 01 e 02 de fevereiro, a que Madrid e Rabat dão o nome de "Reunião de Alto Nível".

Sánchez apresentou ainda o trunfo do controlo das fronteiras, dizendo que, em 2022, os fluxos migratórios ilegais desde Marrocos diminuíram 25%, ao contrário dos aumentos registados noutras rotas.

A cooperação neste âmbito e o novo estado das relações bilaterais ficaram bem patentes em 24 de junho do ano passado, quando milhares de pessoas tentaram saltar a vedação da fronteira de Marrocos com a cidade de Melilla e pelo menos 23 migrantes morreram.

Organizações não-governamentais (ONG) têm denunciado a repressão violenta dos migrantes por Marrocos e Espanha naquele dia, com acusações de tortura às polícias dos dois países.

Os Governos de Rabat e Madrid defenderam as respetivas polícias e saudaram a cooperação bilateral naquele dia.

Para a cimeira, a decorrer em Rabat, o socialista Pedro Sánchez levará consigo uma dezena de ministros, embora nenhum deles do parceiro de coligação no Governo espanhol, a Unidas Podemos, que criticou a mudança de posição em relação ao Saara e tem posições mais alinhadas com a Argélia do que com Marrocos.