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Kakenya negociou com o pai que passaria pela mutilação genital se pudesse estudar: “Acho que, no meu íntimo, sempre fui feminista”

Era adolescente quando foi mutilada, para satisfazer o pai e poder continuar a estudar. Mas na profundidade rural do Quénia, as probabilidades estavam contra si: a comunidade massai ainda pratica, na sua maioria, a mutilação genital feminina. Em alguns casos, a meninas de cinco anos. Kakenya Ntaiya conseguiu, contra todas as expectativas, estudar e escapar a um casamento arranjado. Hoje, ajuda a capacitar meninas e jovens mulheres para também se libertarem das tradições patriarcais. Em entrevista ao Expresso, Kakenya Ntaiya fala do impacto de tudo o que viveu, relata o trauma coletivo da sua comunidade e garante que nada está conquistado em matéria de direitos das mulheres

Kakenya Ntaiya

Por causa de preceitos antigos, o pai de Kakenya “não tinha” escolha. A menina tinha cinco anos quando foi prometida em casamento, mas desejava outro futuro: estudar o mais que pudesse. Em Enoosaen, uma vila no sudoeste do Quénia, onde viviam, todas as raparigas massais eram submetidas à mutilação genital feminina (MGF), e o pai de Kakenya aceitou a chantagem da filha. Aceitaria ser cortada e não fugiria apenas se os pais a deixassem continuar na escola.

Foi assim que, aos 14 anos, na parte de trás de sua casa, uma anciã da aldeia usou contra o seu corpo uma faca enferrujada. Os adultos de Enoosaen observavam enquanto Kakenya Ntaiya desmaiava. “Era-nos incutido o dever de não chorar”, explica, mais de 30 anos depois. Em 1993, Kakenya, hoje ativista e professora, já sabia o significado da escola: “Liberdade.” Agarrou-se a ela o quanto pôde e destacou-se a ponto de conquistar uma bolsa de estudos em Virginia, nos Estados Unidos.

A aldeia, onde as promessas de futuro ainda eram uma miragem, apoiou-a, e Kakenya prometeu voltar. Tornou-se a primeira conselheira jovem do Fundo de População das Nações Unidas, foi para a Universidade de Pittsburgh, onde fez o seu doutoramento, e hoje lidera a fundação Kakenya's Dream, que, desde 2009, já serviu de escola a mais de 800 meninas de comunidades rurais do Quénia. A primeira escola primária para meninas na sua aldeia, o Centro de Excelência Kakenya, está a ajudar, também, a manter afastadas das práticas ancestrais dezenas de raparigas. (O número de raparigas e mulheres que foram submetidas à mutilação genital feminina aumentou em 15% nos últimos oito anos, de acordo com a Unicef: mais de 230 milhões de meninas e mulheres vivas hoje foram submetidas a esta prática, escreve o jornal “The Guardian”. Os números comparam com os 200 milhões, em 2016. A tendência é que as meninas sejam mutiladas em idades mais jovens.)

No entanto, nesta entrevista com o Expresso, a ativista e educadora do Quénia explica que, apesar de a MGF ser um problema de maior relevância, o feminismo é necessário em toda a parte (mesmo nos países mais ricos).