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Ex-funcionária acusou ONU de passar nomes de ativistas à China: alegada prática “nunca foi investigada”, despedimento foi “legal”

Emma Reilly, antiga funcionária do gabinete do Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, acusou a ONU de dar nomes de ativistas chineses a Pequim. Despedida em 2021, levou essa decisão a tribunal. A justiça determinou agora que o desfecho foi “legal”. No acórdão que o determina, surgem outras conclusões: Reilly entendia que precisava de relatar a situação para “evitar uma ameaça significativa à saúde e segurança pública” e, apesar das queixas, “o assunto nunca foi investigado”

Chris Hondros/ Getty Images

O Tribunal de Disputas das Nações Unidas concluiu que foi “razoável, legal e proporcional o fim da relação laboral entre a ONU e Emma Reilly – que acusou a organização de dar a Pequim nomes de uigures e ativistas chineses que iriam participar em sessões do Conselho de Direitos Humanos (HRC, em inglês). A ex-funcionária do gabinete do Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos foi despedida em 2021 e a decisão do tribunal, divulgada este mês, refere que montou “uma campanha de degradação pública” contra a ONU e seus altos membros.

O processo focou-se em determinar se foi legal a sanção disciplinar imposta a Reilly no seguimento de investigação à sua conduta. Até determinar isso, o tribunal não deixou de reconhecer as preocupações que levaram a trabalhadora a falar. “A prova disponível, incluindo o testemunho de um ativista em direitos humanos, permite concluir que na altura das cartas e na perceção da requerente, relatar a prática em causa era necessário para evitar uma ameaça significativa à saúde e segurança pública”, lê-se no acórdão.

Durante cerca de dez anos, Reilly expôs as suas alegações em mecanismos internos nas Nações Unidas, plataformas públicas e casos judiciais. “Todas as sessões, antes de cada sessão, o Governo chinês perguntava à ONU se certas pessoas planeavam ou não participar. É completamente contra as regras dar essa informação a qualquer Governo, mas a ONU abre uma exceção para a China e apenas para a China, e dá-lhe os nomes”, disse Reilly, em entrevista à rádio LBC.

O tribunal observa que Reilly ativou os mecanismos internos da ONU para alertar para a situação ao longo dos anos: em 2014 relatou o caso ao vice-alto comissário para os Direitos Humanos, em 2015 ao novo alto-comissário e em 2018 ao secretário-geral. No entanto, reconhece, “nenhuma ação foi tomada”.

“Há prova de que o assunto nunca foi de todo investigado”, conclui o acórdão. Um email de 2 de dezembro de 2019 que consta do documento, enviado pelo painel encarregue de investigar as queixas, dizia que a investigação “não iria lidar” com a alegação inicial de Reilly – de fevereiro de 2013 – sobre a passagem de informação confidencial à delegação chinesa. “Foi decidido e incluído nos nossos termos de referência que a nossa investigação deve ter âmbito mais limitado e cobrir as suas queixas sobre assédio e abuso de autoridade”, explicava-se.

Onde se traça o limite à denúncia?

As questões não ficaram apenas no círculo interno das Nações Unidas. Reilly enviou cartas a representantes da União Europeia e a Estados-membros a informar desta prática. O acórdão indica que contactou, por exemplo, o chefe da diplomacia da União Europeia, representantes dos Estados Unidos e da Irlanda. Além disso, sugeriu a um eurodeputado a possibilidade de a Comissão Europeia reter a contribuição anual ao gabinete do Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos.

“[Reilly] testemunhou que os ativistas de direitos humanos cujos nomes foram confirmados à delegação de um Estado-membro corriam elevado risco de ser intimidados a não aparecer ou a mudar as suas declarações antes das sessões do HRC [Conselho de Direitos Humanos]. Segundo ela, ao ‘fornecer’ os nomes de indivíduos acreditados antes das sessões do HCR, a ONU estava essencialmente a ajudar a que fossem um alvo”, descreve o tribunal.

No caso das cartas enviadas a Estados-membros e à União Europeia, o tribunal considera que Reilly tinha “o direito de relatar aquilo que considerava ser má conduta” e esta ação estava protegida. O mesmo não aconteceu com o recurso a redes sociais e meios de comunicação.

As ações na esfera pública levaram o tribunal a considerar que o fim da relação laboral com compensação foi uma sanção disciplinar “razoável, legal e proporcional”. Em causa estão centenas de tweets e entrevistas a meios de comunicação, da emissora americana Fox News ao jornal francês “Libération”. Neste campo, o tribunal entendeu que Reilly “montou uma campanha pública ativa nos media e redes sociais para vilipendiar e denegrir a organização”.

“Sofrer retaliação por uma denúncia é uma coisa. Mas ser colocado sob investigação por envolvimento em atividades externas não autorizadas, incluindo montar uma campanha pública contra a organização e alguns dos seus funcionários, depois de isso ter sido explicitamente desaconselhado, é uma questão completamente diferente”, diz o documento.

A justiça concluiu que as alegações de Reilly de que lhe fora atribuído estatuto de denunciante pelo secretário-geral da ONU em 2020, António Guterres, são “factualmente incorretas”, e que a sua conclusão de que obteve esse reconhecimento teve por base “apenas a sua própria perceção”.

O testemunho de um ativista

Aparece identificado no documento como “W01”. O acórdão inclui o relato de um ativista de direitos humanos – não identificado – que confirmou os “sérios riscos” que a partilha de nomes pode representar para os ativistas e as suas famílias.

“Em 2012, autoridades governamentais usaram a sua influência contra o seu irmão para tentar intimidar [o ativista] a parar o seu ativismo e não frequentar uma sessão do HRC em que iria testemunhar. Em 2018, quando [o ativista] ia falar de novo ao HRC, o seu irmão ligou-lhe várias vezes, preocupado com a sua segurança e a perguntar porque [o ativista] não podia encontrar outro trabalho. Por fim, em 2019, o seu irmão foi posto sob detenção na cidade de fevereiro a junho”, relata um excerto do documento.

O acórdão descreve ainda que foi mostrado a este ativista um email de uma autoridade governamental a pedir a confirmação de pessoas acreditadas para participarem numa sessão do Conselho de Direitos Humanos, em 2013, que “confirmou os sérios riscos que esta prática representa”. Disse que se tratava de “uma questão moral que prejudica a vida dos ativistas e das suas famílias”.

Mas se as sessões são do domínio público, de onde surge o risco? O ativista em causa descreve que só publica informação sobre a sua participação no Conselho de Direitos Humanos após as sessões, para minimizar a exposição e limitar tanto o conhecimento da sua família como a capacidade de outros se aproveitarem dessa informação.

ONU rejeitou ter colocado ativistas em risco

Declarações da ONU anteriores ao término deste processo judicial contestavam a versão de Reilly sobre as práticas do organismo. Em 2019, a Fox News noticiou que uma delatora das Nações Unidas enviou uma carta a diplomatas americanos a alertar que a ONU “aparentemente” continuava a dar informação sobre ativistas chineses à China, incluindo nomes de dissidentes tibetanos e uigures residentes nos Estados Unidos.

A prática era rejeitada pela ONU, que disse à emissora que as alegações se tratavam de uma “distorção” e que “o gabinete do Alto Comissário em nenhuma circunstância divulgou nomes de defensores de direitos humanos que vinham ao conselho”.

Ao diário de Hong Kong “South China Morning Post”, um porta-voz do gabinete de Direitos Humanos disse que a prática de revelar nomes de participantes em sessões a governos acabou em 2015. “Rejeitou de forma inequívoca” as alegações de Reilly de ação imprópria.

Um comunicado das Nações Unidas que data de 2017 rejeitou alegações de duas publicações em como o comissariado para os Direitos Humanos colocou em risco quatro ativistas chineses que participaram numa sessão em 2013. Segundo a ONU, era comum as autoridades chinesas – e outras – perguntarem nos dias que antecedem os encontros se iriam participar determinados delegados de organizações não governamentais. “O gabinete nunca confirma esta informação antes de o processo de acreditação estar formalmente a decorrer, e até ter a certeza de que não há risco óbvio de segurança”, indicava a nota.

O Expresso tentou contactar o gabinete do secretário-geral da ONU, mas até ao momento não obteve resposta.