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A noite de fogo e fúria. Por Clara Ferreira Alves em Israel

A noite em que Gaza foi bombardeada em tapete, carpet bombing, uma tática militar destinada a destruir centros vitais no inimigo e a minimizar baixas militares, enquanto a artilharia faz o seu trabalho em terra, armas pesadas e grossas, difíceis de movimentar

Abu Assad está sem voz. Rouco de fúria e desgosto. A noite vergou-o.

A noite em que Gaza foi bombardeada em tapete, carpet bombing, uma tática militar destinada a destruir centros vitais no inimigo e a minimizar baixas militares, enquanto a artilharia faz o seu trabalho em terra, armas pesadas e grossas, difíceis de movimentar.

Abu Assad está algures em Jerusalém oriental, ou talvez não, talvez na Cisjordânia. Não sei e ele nunca vai dizer.

Conheço-o há anos e Abu Assad não é o nome verdadeiro. Já teve outros, vários, todos precedidos de Abu que significa “o pai de”. Esteve nas Intifadas, amanheceu anos em prisões israelitas, e acabou por desistir de acreditar na Autoridade Palestiniana ou na capacidade de os palestinianos combaterem Bibi Netanyahu. Era, antes do dia 7 de Outubro, um admirador do Hamas, a conversão de um moderado que gostaria de ter participado numa solução política para a causa palestiniana. Como tantos outros, desistiu de acreditar. “O Hamas montou uma boa operação em Gaza, são formidáveis, uma máquina militar, finalmente, para enfrentar Israel”.

A 7 de Outubro o mundo mudou, o nosso mundo ocidental também irá mudar. Abu Assad fala agora em “vocês” quando fala comigo. “Vocês estão a matar, assassinar, queimar com as vossas bombas uma população esfomeada, que bebe água das retretes, que não tem medicamentos, que não tem fuel, e que agora nem pode comunicar. Os médicos estão sem meios, os paramédicos e ambulâncias não podem acudir, ninguém se sabe orientar naquele inferno que vocês criaram. Vocês estão a praticar um genocídio, simplesmente isso, o genocídio da nossa gente. O que vai sobrar em Gaza? Digo o que vai sobrar aqui, deste lado, na Cisjordânia, um ódio que não tem fim. Vamos atrás de vocês tal como vocês vieram atrás de nós. Conte os árabes que há no mundo, os muçulmanos, e em cada um terão um inimigo a partir desta noite. Vocês julgam que podem fazer tudo, não podem. Ainda não estamos mortos, não estamos todos mortos. E por cada mártir, um novo militante vai nascer!”

Na Cisjordânia, é a época da apanha da azeitona

Tento explicar a Abu Assad que sou jornalista, mas a partir de agora faço parte de uma coligação de inimigos e assassinos, americanos, europeus. E os judeus, claro. Os israelitas e a sua máquina de guerra, atiçada pela carnificina de 7 de Outubro, um dia que mudou o mundo tal como o 11 de Setembro mudou o mundo. Sempre o ouvi renegar a linguagem do martírio e dos mártires, ele é secular, e agora ouço-o usar a palavra mártir.

“Vocês não sabem o que estamos a sofrer. Não querem nem quiseram saber. Somos menos que animais para vocês. Bons para morrer”.

Na Cisjordânia, é a época da apanha da azeitona. Os palestinianos estão amedrontados e as terras, em muitos lugares, estão a ser anexadas por colonos fortemente armados para os quais o dia 7 de Outubro é a oportunidade para expulsarem e matarem os palestinianos de vez. A nova naqba. O Exército de Israel, IDF, está ocupado a sul e a norte, e ali reinam os colonos.

Um membro do governo de Netanyahu, um religioso de extrema-direita, Itamar Ben-Gvir, anda a distribuir armas aos colonos, sobretudo aos mais radicais. Ele e a mulher montaram uma operação de distribuição, que faz com que milhares de colonos passem a ter armas de guerra. Muitos colonos, mesmo os pacifistas, assustados, pegam em armas. Gvir é ministro do Interior e tem a seu cargo as polícias. Faz isto impunemente, depois de ter sido um dos provocadores do atual governo que foi para Al-Aqsa em dia de oração exortando os palestinianos a entrarem em confronto para os poder humilhar e prender. Quando fala, Gvir espuma ligeiramente da boca. E estará contente com este estado de coisas, embora os militares israelitas o abominem.

Neste momento, o que ocupa o corpo militar de elite, o do War Room, é Gaza e o Hamas, e a defesa do Norte do país. Para Israel, que tem os reféns nos túneis de Gaza, esta guerra é existencial. Uma frase em moda.