Internacional

33 anos após a reunificação, a Alemanha vive na sombra de uma extrema-direita a crescer (e com testes à porta)

No dia 3 de outubro passam 33 anos sobre a assinatura do Tratado da Unificação que uniu todos os alemães na República Federal Alemã. A subida da extrema-direita nas sondagens de intenção de voto é um bom indicativo de que há que repensar o rumo a seguir

Alice Weidel, líder da AfD, com o Parlamento Federal em fundo, durante a entrevista de verão para o canal ARD
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A Alemanha orgulha-se da sua Erinnerungskultur. É a cultura desenvolvida pelos cidadãos e pela sociedade para lidarem com o passado do país, que inclui alguns dos episódios mais trágicos da memória histórica coletiva europeia. Por isso, Berlim é provavelmente a capital europeia que mais sinais ostenta das perseguições políticas que ali tiveram lugar no último século.

Pequenas chapas de metal junto às portas das antigas moradas de pessoas que foram deportadas para campos de concentração lembram os nomes e as datas de partida de milhares de judeus de Berlim.

Cruzes brancas enterradas assinalam, ao longo do antigo traçado do Muro assinalado no chão, os muitos alemães que procuraram fugir à separação física, política e social entre Leste e Ocidente que durou 28 anos.

Manteve-se o que restou da fachada da Anhalter Bahnhof, perto da Praça de Potsdam, a estação de comboio central antes de Berlim antes da II Guerra Mundial, que foi bombardeada naquele período. Ou a torre do pináculo da igreja memorial Kaiser Wilhelm, em plena avenida comercial da zona ocidental da cidade conhecida pelo nome de Ku’damm, a versão curta do boulevard Kurfürstendamm.

"Acredito que a AfD tem razão", slogan escrito numa t-shirt de um simpatizante da Alternativa para a Alemanha
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Memória coletiva

Tudo isto faz parte do imaginário de quem comemora por estes dias o 33º aniversário da unificação da Alemanha. A queda do Muro de Berlim aconteceu a 9 de novembro de 1989 abrindo caminho para reunificação, que sob a determinação do então chanceler Helmut Kohl, aconteceu um ano depois. O Tratado da Unificação foi assinado a 20 de setembro de 1990, selando a divisão da Alemanha, e declarando o dia 3 de outubro feriado nacional.

Berlim tem a agenda cheia de comemorações ali no seu coração, em torno da Platz der Republik, no Reichstag (Parlamento Federal) e Portas de Brandenburgo, estendendo-se pela avenida 17 de junho, para ocidente, e para Unter den Linden, a leste. Costuma haver um festival, não é o caso deste 2023, mas a festa convida todos a provarem especialidades alemãs nos stands montados para o efeito, há palcos para representações e música com fartura.

Este povo avesso a mudanças já fez caminho desde 1990 e bem pode refletir sobre o significado da reunificação. Quando o grito repetido em coro “Somos um povo!” punha fim à República Democrática da Alemanha (RDA) anunciava, ao mesmo tempo, o esforço de adaptação a que os indivíduos das famílias comuns da RDA teriam de se entregar a partir dali.

O desenvolvimento dos “dois países” esbate-se em cada geração que circula livremente pelo país, como então não era possível, porém o investimento feita na atualização do leste alemão não conseguiu compensar o mal-estar perante o “apagamento” que a República Federal procurou fazer do Estado comunista de leste, alegam muitos alemães de leste.

É ali que a extrema-direita engrossa as estatísticas das intenções de voto nacionais. Em meados de agosto, o sobressalto perante as estatísticas publicadas pelo instituto de sondagens Infratest Dimap para o canal estatal ARD - 20% dos votos - alimentou a onda positiva do congresso da Alternativa para a Alemanha (AfD), o partido de extrema-direita que não conseguiu entrar para o Parlamento Federal nas legislativas de 2013 por não ter alcançado os 5% dos votos exigidos pela Constituição da República Federal de 1949. Mas que entrou lá quatro anos depois.

Uma divisão ainda sensível

Em Magdeburgo, estado federal da Saxónia-Anhalt (ex-República Democrática da Alemanha) a AfD deixou explícitas as suas ambições ideológicas e eleitoralista: a proteção das suas fronteiras externas contra a migração, autonomia estratégica na política de segurança nacional e a preservação de “identidades diferentes” na Europa. O partido “consolidou-se na direita radical”, como explicou ao Expresso Mónica Dias, professora do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa, e capitaliza votos nos milhares de alemães descontentes, muito em particular com a política da imigração do Governo federal.

“Se as eleições fossem este domingo” a AfD, partido até agora controlado por um “cordão sanitário” que o tem mantido fora de qualquer coligação com as formações democráticas do espectro político alemão, ficaria apenas abaixo da coligação democrata-cristã da CDU/CSU (centro direita), com 28%, e acima dos 18% obtidos pelo partido que lidera a coligação no Governo, os sociais-democratas do SPD (centro-esquerda).

Em 2023, a AfD é percecionada como sendo um partido de extrema-direita, nacionalista, faz observações racistas, islamofóbicas, antissemitas, antidemocráticas, antifeministas e anticientíficas. Pior do que não incomodar os seus eleitores é estes factos serem estimulantes e motivadores para eles.

Líderes de índole duvidosa

A desconfiança nos líderes partidários está a abalar o sistema político alemão favorecendo os partidos oportunistas. A revista “Der Spiegel” publica um artigo no site neste sábado sobre o líder da CDU cujo título é “Muitos membros da CDU têm vergonha do seu líder”.

A polémica estalou há dias quando Friedrich Merz afirmou publicamente que os candidatos a asilo que são rejeitados cuidavam dos dentes enquanto estavam na Alemanha. As críticas internas choveram acusando-o de alimentar sentimentos xenófobos populistas. Merz poderá vir a retirar o que disse enquanto os porta-vozes do partido fazem acrobacias para minimizar o mal feito, mas será sempre tarde demais para o eleitorado alemão que dá ouvidos àquela retórica.

Episódios como este obrigam o chanceler a fazer de paladino da verdade ou aferidor da deriva da mais básica desinformação corrente. Olaf Scholz apressou-se a afirmar que a representação veiculada por Merz nem sequer corresponde à situação legal na Alemanha. A conclusão é que há muita energia política a ser desperdiçada neste jogo que só favorece os discursos de eleitores mais radicais.

As ensombradas eleições na Baviera

Também o estado da Baviera, o mais rico e um dos mais influentes na Alemanha, vê as eleições estaduais de 8 de outubro próximo ensombradas. No final de agosto estourou a polémica. Hubert Aiwanger, vice-presidente e ministro da economia do Land (estado) e líder do partido Eleitores Livres (Freie Wähler) foi obrigado a admitir ter estado envolvido na distribuição de panfletos antissemitas há 35 anos, quando frequentava o liceu no final dos anos 80.

A candidatura de Aiwanger às eleições do próximo dia 8 vacila perante os crescentes apelos à sua demissão vindos de todos os quadrantes. Terá futuro no partido que levou a crescer nas sondagens ao longo das últimas semanas?

A Alemanha saberá como lidar com estes episódios internos que podem e devem ser vistos no âmbito de fenómenos transversais à Europa. A menos de um ano das eleições europeias (junho 2024), a ascensão da AfD, bem como de outros da extrema-direita europeia, está a colocar em causa o atual “cordão sanitário” existente no Parlamento Europeu (PE) a estas formações radicais.