O Governo do Reino Unido e a Comissão Europeia (CE) chegaram a acordo sobre o protocolo da Irlanda do Norte, anunciou esta segunda-feira fonte do Executivo britânico, citada pelos principais jornais do país. O primeiro-ministro Rishi Sunak e a presidente da CE explicarão o que está em causa numa conferência de imprensa marcada para a tarde. A notícia já fez subir a cotação da libra nos mercados globais.
“Nem tudo foi fácil”, afirmou o conservador Sunak aos enviados de Bruxelas. Louvou o seu “trabalho incrível” e o “esforço fantástico” e “atitude muito positiva e construtiva” da equipa de Von der Leyen. Resta saber que prevê o acordo e se passa no Parlamento britânico. Parte do partido do primeiro-ministro mostrava reservas em qualquer pacto que não revogasse a jurisdição do Tribunal Europeu sobre assuntos da Irlanda do Norte. Embora a oposição trabalhista possa vir em socorro do primeiro-ministro, precisar desse apoio é mau para um governante que tem maioria absoluta.
Fala-se de afrouxar os controlos criando vias “verde” e “vermelha” para produtos, consoante o seu grau de sensibilidade. Pode haver também certificação prévia de alguns fornecedores.
Herança amarga do ‘Brexit’
O protocolo da Irlanda do Norte foi a forma de Londres e Bruxelas resolverem o problema gerado pela saída do Reino Unido da União Europeia (UE). Este território, parte do Reino Unido, tem fronteira aberta com a Irlanda, que é membro da UE, ao abrigo do Acordo de Sexta-feira Santa, que em 1998 pôs fim a décadas de conflito sangrento entre protestantes unionistas, que defendem a permanência da Irlanda do Norte no Reino Unido, e católicos republicanos, partidários da reunificação irlandesa.
O ‘Brexit’ obriga a verificações de produtos que transitam nas fronteiras entre a Grã-Bretanha e a Irlanda do Norte, pois dali podem seguir para a Irlanda e os demais 26 Estados-membros da UE. O ex-primeiro-ministro britânico Boris Johnson fez instalar essa fronteira aduaneira no mar da Irlanda, isto é, entre duas partes do Reino Unido. Os unionistas ficaram furiosos, até porque o Governo conservador britânico lhes prometera o oposto. Johnson tornou-se um dos principais críticos do protocolo, embora fosse o seu mentor.
A principal formação política desta fação, o Partido Unionista Democrático (DUP, na sigla inglesa), opõe-se ao protocolo. A ala eurocética do Partido Conservador britânico também, e condiciona a sua posição à do DUP. Consideram que deixa a Irlanda do Norte nas garras de Bruxelas e pode contribuir para o desmembramento do Reino Unido, ao “empurrar” o território para a Irlanda. Note-se que o Acordo de Sexta-feira Santa permite um referendo norte-irlandês sobre reunificação com a Irlanda (com subsequente reintegração na UE) caso haja sinais de vontade popular nesse sentido.
Território sem governo há mais de um ano
O impasse leva a que a Irlanda do Norte esteja sem governo autónomo há mais de um ano. O Acordo de Sexta-feira Santa Estipula que o Executivo tenha de incluir católicos e protestantes, representadas pelo maior partido de cada lado. O mais votado tem o cargo de primeiro-ministro, o segundo fica com o vice-primeiro-ministro, mas ambos têm idênticos poderes e a demissão de um implica a queda do outro.
O último chefe do Executivo, Paul Givan (DUP) demitiu-se a 4 de fevereiro de 2022. Em maio houve eleições e a vitória foi para o Sinn Féin (SF, católico e republicano, outrora braço político do Exército Republicano Irlandês — IRA), que teve 29% dos votos e 27 deputados, contra 21,3% e 25 deputados do DUP.
A tensão entre comunidades cansa o eleitorado. Em maio o partido que mais cresceu foi o Aliança, que rejeita a dicotomia histórica e se foca em assuntos do dia a dia. Subiu de 4,5% para 13,5% e de 8 para 17 deputados (num total de 90). Mas, como o SF e o DUP não chegam a acordo (sobretudo porque os unionistas se recusam a fazer parte das instituições políticas enquanto o protocolo não for alterado), não há Governo e o parlamento regional não está a funcionar.
Acresce que em anos recentes tem ressurgido tensão entre comunidades. O espectro da violência nunca está ausente.
Sobre o acordo entre Von der Leyen e Sunak, o chefe do DUP, Jeffrey Donaldson, pede tempo para “ponderar os detalhes e avaliar o acordo” segundo sete critérios: igualdade de tratamento a todos os cidadãos do Reino Unido (ou seja, não diferenciar a Irlanda do Norte em termos regulatórios ou aduaneiros); evitar que o comércio se desvie do território por causa das dificuldades acrescidas na circulação; fim da fronteira aduaneira no mar da Irlanda, entre a Grã-Bretanha e a Irlanda do Norte; que os norte-irlandeses — a quem o protocolo deixa sob regras da UE nalguns assuntos — possam pronunciar-se sobre todas as leis que os afetem; que não haja controlos de produtos que circulem entre partes do Reino Unido; que não haja diferença regulatória entre as mesmas, salvo autorização das instituições norte-irlandesas; e que a letra e espírito do Acordo de Sexta-feira Santa sejam preservados.
Polémica envolve Carlos III
Von der Leyen esteve com Sunak em Windsor para ultimar o acordo e em seguida visitou o rei. O palácio de Buckingham informou que “o rei tem prazer em encontrar-se com qualquer dirigente mundial que visite o Reino Unido, e foi aconselhado pelo Governo a fazê-lo”. Ora, para os unionistas da Irlanda do Norte e os conservadores eurocéticos, envolver Carlos III neste momento delicado põe em causa a neutralidade que se exige ao chefe de Estado.
Um porta-voz de Sunak afirmou, contudo, que este “acredita firmemente que essas decisões cabem ao rei”, frisando que é comum Carlos III encontrar-se com dignitários estrangeiros que passam pelo país.
Os principais partidos da oposição britânica elogiaram o acordo, sem evitarem críticas ao Governo Conservador. O trabalhista Peter Kyle, ministro-sombra para a Irlanda do Norte, vê no acordo “uma oportunidade para a Irlanda do Norte, o Reino Unido e a UE andarem para a frente”, mas espera pelo conteúdo do acordo para se pronunciar. Nota ainda que “os partidos e comunidades da Irlanda do Norte precisarão de tempo” para apreciar o documento.
Já o chefe dos liberais democratas, Ed Davey, atacou o Executivo por ter demorado anos a resolver o assunto, depois de ter sido “o primeiro responsável pela confusão”. E apontou as divergências internas no partido de Sunak: “Em vez de serem responsáveis, parece que os deputados conservadores preferem lutar uns com os outros”. Exorta-os a porem “o país à frente do partido”.