Yuriy Bilinskyy, ucraniano residente em Portugal há 22 anos, envia ao Expresso uma fotografia de uma mulher de 52 anos, a sua idade também, com uma enorme espingarda na mão. A legenda: “Mãe de três filhos protege-se contra a ameaça da Rússia”. A história está em várias páginas da Internet e, pelo que conta Bilinskyy, não é um relato incomum. “Todos nós já vimos a morte, é essa experiência que nos une e estamos mais unidos que nunca”, diz ao telefone, de Budapeste, onde espera o voo de ligação para Kiev.
Vai a casa ver o sobrinho, que faz um ano por estes dias, e a vida segue de forma normal. “As pessoas vão ao cinema, ao teatro, ao café, juntam-se em casa de amigos, já fomos invadidos, há oito anos, isto não é problema recente.”
A habituação a um cenário de guerra não é algo que o orgulhe ou agrade, mas tudo se explica com razões que, assegura, “muitas vezes o Ocidente não vê e a comunicação social não fala, ou vice-versa”. Para Bilinskyy, que tem uma pequena agência de viagens em Lisboa, “não há império russo sem a Ucrânia, a chave-mestra é Kiev, o berço da Igreja Ortodoxa, por isso o senhor que manda em Moscovo precisa de nós para o seu plano de reativar a ordem geoestratégica estabelecida em Ialta, a divisão do mundo”. Atalha, contudo, em referência ao Presidente russo: “Mas Putin tem um problema, é que nós somos independentes”.
Halya Komar, 33 anos, especialista em telemarketing, diz-se “bastante surpreendida” com a atitude das pessoas com que fala na Ucrânia. “Toda a gente parece continuar a viver com normalidade, apesar de também estarem preparados para ajudar a defender o país. A minha família está toda na Ucrânia e cada um faz o que pode para ajudar na defesa: uns doam dinheiro, outros comida, e, por exemplo, o meu cunhado dá sangue muitas vezes, para os militares, por ter um tipo de sangue raro”.
A cada dia que passa, novas imagens de satélite, informações recolhidas por agências ocidentais, mostram que a Rússia tem a sua diplomacia no terreno, mas também o seu poderio militar às portas da Ucrânia, não só a leste mas a norte, na Bielorrússia, onde o Presidente Alexander Lukashenko é grande aliado de Putin, de quem depende para se manter no poder. Mesmo assim, muitos ucranianos (é o caso de Yuriy) consideram que uma invasão em larga escala é “pouco provável”, porque “2022 não é 2014” e agora “a Ucrânia tem um exército treinado, com soldados pagos, não apenas miúdos”. E tem também senhoras como a que foi fotografada com a espingarda e as faixas de balas. “Meio milhão de ucranianos já vive a guerra todos os dias, talvez outro tanto tenha fugido.” Bilinskyy recorda as recentes mudanças na lei ucraniana, que abriram a porta à criação de “forças militares locais por distrito ou cidade”.
Também Yehven Doloshytskyy, analista financeiro de 28 anos, tem dúvidas quanto a uma invasão total da Ucrânia. Putin está a ser pressionado “pelos mais velhos, que o apoiam e querem uma nova União Soviética” mas “já não vamos voltar a Ialta, isso é para esquecer e é claro Putin o sabe”. Refere a cimeira na cidade balnear do Mar Negro que, em 1945, dividiu o mundo em esferas de influência entre vencedores da II Guerra Mundial: a capitalista e a comunista.
“Não sei se Putin vai deixar passar a oportunidade”
É precisamente por Putin se sentir “pressionado” que a Ucrânia corre perigo, argumenta Mykhaylo Shemliy, que conta já bem mais de metade da vida em Portugal. Tem 22 anos, chegou com 7, em 2007, mas os pais vieram antes. “Iam e vinham, iam e vinham, depois lá se decidiram a trazer-me com eles, porque claramente queriam cá ficar”, conta ao telefone o licenciado em Gestão, cabeça de lista do partido Volt no distrito de Santarém nas eleições de 30 de janeiro.
Não foi eleito, mas a luta pelos valores europeus continua — aqui, na sua terra adotiva, e lá longe, onde os amigos tentam criar um partido europeísta onde depositar votos e esperança. Para ele, Putin não está só a fletir o seu músculo militar para impressionar o Ocidente. “Ou ataca agora ou vai deparar com um exército bem preparado e cheio de armamento vindo da NATO, por isso tem esta oportunidade e não sei se a vai deixar passar.” A acontecer, só depois dos Jogos Olímpicos de Inverno, prevê o jovem. “Agora não vai chatear a China, tirar-lhe os holofotes.”
Com a família longe do leste, em Lviv — “de onde podem saltar para a Polónia se for caso disso” —, o que mais o preocupa são as provocações. Lembra que em 1999, quando vários edifícios explodiram em Moscovo e Volgodonsk, Putin usou a desculpa do terrorismo checheno para lançar a Segunda Guerra da Chechénia. “A Federação Russa tenta desestabilizar países, a vida social, de todas as formas possíveis, por exemplo com ataques informáticos às dependências estatais e serviços públicos. Depois espera que os descontentes adiram à propaganda russa”.
Como quase todos os ucranianos, Mykhaylo fala russo e passa noites a ver os canais da televisão estatal. “São horas e horas de propaganda anti-Ocidente, a sério. Lembras-te quando caiu aquela ponte em Itália, há uns quatro ou cinco anos? Andaram a dizer que na Europa não sabem construir infraestruturas, que os engenheiros são incompetentes, aumentaram o número de mortes nas notícias e até foram buscar outros exemplos, como a ponte que caiu cá em Portugal há 20 anos [Entre-os-Rios]. É impressionante o nível da desinformação e há milhões de pessoas expostas a isto, tanto na Rússia como nos satélites mais próximos de Moscovo, como a Bielorrússia, o Cazaquistão, etc.”
Ao mencionar estes dois países, o jovem faz uma ressalva para distinguir o seu dos restantes: “Na Ucrânia já tivemos seis presidentes em 30 anos de independência, não temos governos que duram 20 ou 30 anos com a mesma pessoa à cabeça. Estamos um bocadinho mais à frente e somos mais difíceis de controlar do que outros países que ainda são fortemente dependentes da Rússia para tudo”.
É por isso que este pode ser o momento fulcral para o ataque. “Putin está a ver as armas a entrar, a nossa diplomacia a resultar, muitas nações ocidentais apoiam a Ucrânia, temos ligações a várias organizações da UE. Se não for agora vai ser muito díficil”. Yehven concorda num aspeto: “Embora uma guerra aberta seja um acontecimento com potencial muito catastrófico, acho que as pessoas cada vez mais entendem que há outras formas de resolver as coisas sem armas”.
Um sofrimento com muitos anos
“Agora o conflito está muito nas notícias, mas temos de nos lembrar que os ucranianos lidam com isto há anos. Não há medo, mas há um grande cansaço, enorme. Até o meu irmão, que já tinha 16 anos quando os meus pais vieram embora para Portugal, e quis mesmo ficar no seu país, veio também para cá quando a guerra começou. A instabilidade é muito grande para criar uma família”, diz Yehven, que chegou com 9 anos a Portugal.
Sente-se um pouco desiludido com a União Europeia, que mesmo em 2014, quando um avião da Malaysia Airlines foi atingido por um míssil russo, matando mais de 200 pessoas, “impôs sanções e mais nada”. Pergunta-se por que razão seria diferente desta vez. “Os europeus não querem mandar os seus filhos morrer numa guerra lá longe, e eu entendo.” Diz que é impossível para um observador normal entender que interesses existem por trás desta escalada da retórica, “tão rápida, tão aparentemente artificial”, mas esforça-se por afastar razões de ordem económica, como a reorganização do mercado energético mundial.
Apesar de se sentir muito mais próximo da União Europeia do que da Rússia, reconhece que “a própria NATO não está a cumprir tudo o que terá prometido naquele acordo de cavalheiros”, porque “supostamente a ideia era não se expandir para leste”. Não há nenhum papel assinado com este compromisso, mas muitos analistas de política internacional consideram que o tal acordo é uma peça importante nas relações pós-Guerra Fria e deve ser tido em consideração
Ao mesmo tempo, confessa, “um ucraniano olha para a República Checa, para a Polónia, para aquela espécie de nova Europa Central, e quer evoluir nesse sentido, não no sentido do leste”. Formou-se em Portugal e diz maravilhas dos professores do ciclo, que lhe fizeram testes especiais, pois só falava um bocadinho de inglês. “Não precisavam de ter feito isso, deixavam este miúdo chumbar, não fazia mal nenhum, mas não, não me deixaram chumbar e fizeram perguntas simples e adaptadas. Não consigo esquecer isso.”
As milícias que já os salvaram
Muitas têm sido as reportagens que chegam da Ucrânia e parecem mostrar um país inteiro de civis preparados para pegar em armas. Não será fenómeno assim tão disseminado. “As pessoas não passam os fins de semana a aprender a disparar, e também não vivemos na América, onde é possível adquirir armas sem grande dificuldade”, ri-se Mykhaylo Shemliy. O facto é que há grupos de militares, reservistas, e mesmo civis com treino na área da segurança que se organizam para partilhar planos de defesa das suas cidades.
Armar civis sem ética e disciplina militar tem os seus problemas, mas Bilinskyy garante que estes grupos são essenciais. “Se não fossem essas milícias — porque sim, claro que são milícias —, a Rússia não tinha parado em Donbass, foram a nossa única linha de defesa até chegar o exército. Somos um povo disciplinado, organizado, não vai haver extremismos”, diz.
Outros conterrâneos estão mais reticentes, mas uma coisa parece ser aceite por todos: foram esses grupos armados inorgânicos que defenderam o país nos primeiros meses do conflito que começou em 2014. Sasha Boychenko, ucraniana de 27 anos residente em Lisboa desde 2016, diz que “por princípio” se opõe ao armamento de civis e até reconhece as filiações extremistas de certas milícias. “Mas é fácil para mim, que estou confortável em Lisboa, segura, a pensar se vou ao parque ou ao ginásio, criticar quem opta por se juntar a esses grupos. A questão é que não os posso julgar, porque têm mesmo de estar preparados. Se vives num país que pode ser atacado, vais querer defender os teus.”
Também os países têm de passar da adolescência para a idade adulta
Para Sasha, que trabalha numa organização europeia de apoio a vítimas de todo o tipo de crimes e tem a família toda na Ucrânia, estar longe “por um lado é privilégio, por outras é ainda mais difícil do que estar perto”. Ao computador, nas redes sociais, a ler notícias, “temos mesmo a sensação de que não podemos fazer nada”, admite, ao telefone com o Expresso. Fala muito com os pais sobre a crise, mas, como os outros ucranianos com quem falámos, sublinha os anos que o seu povo já leva de tristeza e sobressalto.
A situação parece-lhe muito mais instável do que em qualquer outro ponto dos últimos oito anos. Nota “um claro objetivo de Moscovo em aumentar o pânico entre os cidadãos”, a desestabilização de que também falava Mykhaylo Shemliy. Fica mais difícil construir uma nação quando a energia está a ser sugada para outras preocupações. “O problema não é apenas a invasão física das nossas fronteiras, é este conflito manter-nos stressados, sem condições para nos preocuparmos com o nosso próprio desenvolvimento”.
Conta que faz, por vezes, uma analogia entre a Ucrânia e um adolescente à procura de si mesmo. “Quando somos novos construímos a personalidade pelas coisas de que não gostamos: não queremos ser, por exemplo, conservadores como os nossos pais. Depois há que começar a pensar no que se quer ser, não apenas naquilo que se é contra. A Ucrânia está assim: sabe que não quer ser como a Rússia, é o que não queremos, mas não temos a energia, o espaço, o tempo para respirar e pensar no que queremos ser. Parte da culpa é da Rússia, que não nos deixa fazer esse caminho sozinhos, descansados”.
Uma mensagem para os portugueses
Tanto Halya como Sasha sentem que as pessoas em Portugal não estão atentas às possíveis modificações deste conflito, que nunca chegue a desaguar em guerra aberta. “Noto que muitos europeus, e nisto incluo os portugueses, claro, parecem não entender que isto afeta toda a gente, direta e indiretamente. A Rússia financia partidos de extrema-direita na Europa, há imensas provas disso. Lá porque não os vemos fisicamente, com armas, não quer dizer que as coisas não estejam todas ligadas”, diz Sasha. Halya, que chegou mesmo antes de rebentar a guerra em 2014, diz que está sempre a tentar explicar aos amigos portugueses que “o que se passa na Ucrânia é uma ameaça para a Europa toda”. “Nada disto é apenas apenas problema nosso, é uma questão de violação do direto internacional. É preciso mostrar que não estamos dispostos, na Europa, a aceitar a modificação de fronteiras, isso não pode acontecer”.
Ao mesmo tempo, o Presidente da Rússia, diz Yuriy Bilinskyy, não está a saber antecipar as consequências de um conflito armado. “Não é nada bom ver corpos de miúdos chegar às cidades, chegar aos seus pais. Já não vivemos no século XIX ou no século XX, alturas em que a guerra estava sempre a acontecer nalgum lado e as pessoas estavam dispostas a perder os seus. Vai abalar imenso a sociedade”. Sabe bem disso. “Todos os dias temos feridos, às vezes mortos. Não aparece nos meios de comunicação, mas as pessoas continuam a viver na linha da frente. O povo chora os mortos há oito anos e, nessa dor, une-se”.