Internacional

Insegurança alimentar atinge valores recorde na América Latina e Caraíbas: há 59,7 milhões de pessoas a passar fome

Novo relatório da ONU revela que em apenas um ano a pandemia de covid-19 aumentou em 30% as pessoas a viver com fome na região. É o valor mais elevado desde o início do século

Membro da comunidade indígena Wichi mostra o seu frigorífico na província de Salta, uma das mais pobres da Argentina, em fevereiro de 2020. Desde o início do ano até à data da fotografia, sete crianças tinham morrido de malnutrição e falta de água potável na povoação
RONALDO SCHEMIDT

A insegurança alimentar na América Latina e Caraíbas está a atingir valores "críticos". Segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), em apenas um ano a pandemia da covid-19 aumentou em 30% o número de pessoas a passar fome na região.

De acordo com um novo relatório, divulgado esta terça-feira, entre 2019 e 2020 o número de pessoas a viver com fome aumentou em 13,8 milhões, de 45,9 milhões para um novo total de 59,7 milhões. É o número mais elevado desde 2000.

"Embora a pandemia tenha exacerbado a situação, a fome tem vindo a aumentar desde 2014", explica Rossana Polastri, diretora do Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola (IFAD) para esta região.

"Devemos dizê-lo alto e claramente: a América Latina e Caraíbas estão a enfrentar uma situação crítica em termos de segurança alimentar. Existe um aumento de quase 79% no número de pessoas a viver com fome entre 2014 e 2020", acrescenta Julio Berdegué, representante regional da FAO.

41% da população vive com insegurança alimentar

A FAO estima que quatro em cada dez pessoas (cerca de 267 milhões) tenham enfrentado insegurança alimentar moderada ou grave durante o ano passado, mais 60 milhões que em 2019. A prevalência de fome na região é agora de 9,1%, a mais elevada dos últimos 15 anos. Embora fique ligeiramente abaixo da média mundial (9,9%), é a região onde este valor está a aumentar mais pronunciadamente. Só no primeiro ano da pandemia cresceu 2%.

As mulheres têm sido particularmente afetadas. Em 2020, perto de 42% enfrentaram insegurança alimentar moderada ou grave, comparativamente com 32% dos homens. A discrepância entre géneros também está a aumentar (de 6,4% para 9,6% apenas no primeiro ano da pandemia).

A situação é especialmente grave na América Central. Na Guatemala, cerca de metade da população está a viver com insegurança alimentar. El Salvador e Honduras tem valores próximos (47% e 46% respetivamente). Estes países, conhecidos no seu conjunto como Triângulo do Norte, são o principal ponto de partida das caravanas de migrantes que têm chegado à fronteira sul dos EUA.

Na América do Sul, a Argentina regista o maior aumento dos últimos anos. Mais de um terço da população tem agora um acesso limitado a alimentos como resultado da crise económica prolongada que tem causado hiperinflação.

O relatório refere ainda que existem agora 92,8 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar severa. É mais do dobro desde 2014 (47,6 milhões). Isto significa que cerca de 14% da população já ficou sem reservas de comida ou já passou um ou mais dias sem comer.

A obesidade continua a aumentar na região

A fome afeta especialmente a população mais vulnerável, mas não é a única forma de malnutrição registada nestes países. Simultaneamente, a região continua a registar um aumento contínuo da obesidade.

Segundo a FAO, 106 milhões de pessoas - o equivalente a um em cada quatro adultos - têm excesso de peso. A obesidade infantil afeta 3,9 milhões de crianças (7,5% dos menores de cinco anos) e tem uma prevalência superior à média mundial.

"Na América Latina e Caraíbas, a covid-19 agravou a crise de malnutrição pré-existente. Com os serviços perturbados e as fontes de rendimento devastadas, as famílias estão a ter mais dificuldade a pôr comida saudável na mesa, deixando muitas crianças com fome e outras com excesso de peso. Para as crianças crescerem saudáveis temos de garantir que todas as famílias têm acesso a comida saudável a preços acessíveis", afirma Jean Gough, diretora regional da UNICEF.