O Reino Unido gastou 23 mil libras (cerca de 27 mil euros) em publicidade no Facebook e no Instagram, destinada a dissuadir candidatos a asilo de se deslocarem até às suas costas. O Governo britânico criou uma página na Internet, “On the Move”, que contém informação dúbia, incompleta e, em certos casos, enganadora, sobre o Reino Unido e as suas leis de asilo.
A ligação do site ao Governo britânico não é indicada em lugar algum da página, mas há um email que o potencial candidato a asilo pode usar para tirar dúvidas, sem saber, claro, que está a enviá-lo para uma dependência do Ministério da Administração Interna. “Não há onde te esconderes”, “Não ponhas a vida do teu filho em perigo” e “Vamos deportar-vos” são algumas das frases no site. A página “On The Move” continua ativa.
Tem ar de página de organização não-governamental e acaba com o sufixo “.org”, normalmente utilizado por associações humanitárias e/ou empresas sem fins lucrativos. Uma investigação dos técnicos de informática do diário “The Independent” revelou que o site é propriedade do Executivo britânico, foi criado em abril de 2020, mas quem o publicou conseguiu apagar a informação normalmente disponível no código dos sites, que revela a sua autoria.
A denúncia destes casos partiu da associação de ajuda humanitária Care4Calais, que presta auxílio a migrantes que se estabelecem na cidade francesa, de onde partem muitos dos que querem chegar ao Reino Unido e pedir asilo. Segundo as autoridades francesas, pelo menos 2000 pessoas estão em Calais a tentar encontrar forma de passar o canal da Mancha.
Muitos procuram fazê-lo em camiões de mercadorias que todos os dias fazem a travessia, muitos mais aventuram-se em barcos de borracha que, mesmo na curta distância que separa França do Reino Unido (pouco mais de 20 quilómetros no trecho de água mais curto), podem virar ou afundar-se caso a água das ondas comece a fazer peso na embarcação.
Membros da associação contaram a “The Independent” que os migrantes não ficaram convencidos com a publicidade nem com o site, porque muitos não veem alternativa senão tentar na mesma. Clare Moseley, fundadora do projeto, acusou a ministra da Administração Interna de “desperdiçar dinheiro” para tentar “enganar pessoas”.
“Estou genuinamente horrorizada com o tipo de coisas que este Governo tenta pôr em marcha para evitar ajudar pessoas que estão desesperadas.” Na opinião da ativista, “a atitude é bastante ingénua, porque não serão anúncios nas redes sociais a dissuadi-los, esta viagem não é uma escolha”.
A campanha esteve no ar entre dezembro de 2020 a abril deste ano. Segundo os voluntários de várias organizações, muitas das pessoas que comentaram ter visto estes conteúdos continuam em Calais e Dunquerque, outro ponto de espera, tentativa e erro na costa francesa. “Vimos estes anúncios e sabemos que a travessia é perigosa, mas é a nossa única hipótese de tentar algo melhor do que estar aqui na selva de Calais”, disse um sudanês.
Outro migrante, do Afeganistão, disse aos voluntários da associação que falaram com “The Independent” que não tinha vindo para Calais “por divertimento”, e que os problemas graves no seu país tornam todos os perigos aceitáveis. “Aceitamos esses perigos se significar chegar ao Reino Unido. Há muito pior do que isto em Cabul”, disse, numa referência à capital do seu país, frequentemente assolada por investidas talibãs.
O radar das autoridades europeias vira-se para o Afeganistão pois é de lá que começam a surgir avisos de nova onda de migrações em direção à União Europeia, uma vez efetivada a partida das tropas da coligação chefiada pelos Estados Unidos, com potencial tomada do poder pelos talibãs.
“Não é possível parar-nos, já aqui chegámos, pusemos as nossas vidas em risco e vimos coisas muito mais terríveis do que qualquer aviso que queiram mostrar-nos sobre a travessia”, disse outro rapaz, de 17 anos.
Dan O’Mahoney, chefe da divisão da Marinha britânica que tem sob a sua alçada as travessias clandestinas, garante que o número de migrantes que tentam atravessar representa uma “escalada inaceitável” em relação a anos anteriores. Alerta para as “viagens desnecessárias” em “pequenos barcos” que põem pessoas em “enorme perigo”.
“Os anúncios chegaram a milhares de pessoas em França e na Bélgica e serviram para dissuadi-las de se lançarem nessas travessias perigosas com o intuito de chegar ao Reino Unido. Fornecemos também informação sobre como pedir asilo nos países seguros em que se encontram”, acrescentou num comunicado divulgado depois de conhecidas as notícias.
Que diz o site
Na página “On The Move”, uma das primeiras perguntas que o visitante é instado a responder é simples: “Está a pensar viajar para o Reino Unido ilegalmente?” Quem respondem que sim é levado para outra página, onde ficam claros os perigos “reais” e “jurídicos” para quem tentar fazer a travessia. Mas nem toda a informação é fidedigna, outra aparece incompleta.
Por exemplo, o Governo avisa que “o Reino Unido envia de volta ao país de onde partiram os que chegam por vias ilegais”. Isto não é verdade: desde 1 de janeiro de 2021 o Reino Unido não pode usufruir das provisões dos Acordos de Dublin, que, de facto, preveem o reenvio de migrantes que chegaram primeiro, por exemplo, a Itália e sejam apanhados no Reino Unido a pedir asilo.
O Reino Unido tem em vigor, para assuntos relacionados com pedidos de proteção internacional, a Convenção dos Direitos das Pessoas Refugiadas. Nada nesse documento obriga os candidatos a asilo a requisitá-lo no primeiro país onde desembarcam.
Lê-se ainda que é “crime” guiar um barco através do canal da Mancha sem autorização, mas os processos criminais contra potenciais traficantes de pessoas são poucos, pois não é fácil provar que quem vem ao leme de um barco é algo mais do que um migrante com experiência de pescador. Além disso, diretrizes recentes do Ministério Público impedem ação criminal contra quem conduza um barco com intuito de pedir asilo, sendo necessária prova de envolvimento em atividades criminosas.
O site tem uma parte dedicada a “formas legais e seguras” de chegar ao Reino Unido, mas nada sobre quais são, direcionando as pessoas para os sistemas de asilo noutros países europeus, como Bélgica ou França, e formas de pedir o regresso voluntário aos seus países de origem.
O número de chegadas tem aumentado, com mais de 8500 pessoas a desembarcar nas praias do sul de Inglaterra nos primeiros seis meses de 2021. Segundo a ONU, em 2020, Itália recebeu 34 mil pessoas por mar, Espanha 40 mil e à Grécia chegaram 10 mil pessoas.