Internacional

Famílias dos agentes que se suicidaram depois dos tumultos do Capitólio querem as suas mortes classificadas como “ao serviço do país”

O suicídio é um problema “pandémico” entre os polícias norte-americanos, palavra de um dos representantes de uma associação que tenta combater o problema. Depois de dois dos agentes que responderam à invasão do Capitólio terem cometido suicídio pouco depois desse dia, o tema voltou aos jornais e as famílias querem que as suas mortes sejam reconhecidas pelo Estado como “mortes em serviço”

Manuel Balce Ceneta

Suicidaram-se 228 polícias norte-americanos em 2019, um aumento significativo em relação ao ano de 2018, quando esse número se fixou nos 172. É um problema antigo. “Os suicídios na polícia são uma pandemia há pelo menos 20 anos, mais agentes morrem pela sua própria mão do que à mão de criminosos violentos - normalmente a média é duas vezes superior”, disse Doug Wyllie, da associação de ajuda psicológica BLUE H.E.L.P., quando estes números foram divulgados em comunicado.

O assunto volta agora aos jornais com a notícia de que dois dos polícias que tentaram impedir a entrada da multidão no Capitólio também se suicidaram. Jeffrey Smith, de 35 anos, esteve no Capitólio a 6 de janeiro para tentar defender o edifício da invasão de que estava a ser alvo. Era polícia, ficou ferido e suicidou-se quando o médico o mandou regressar ao trabalho.

Ao “Washington Post”, a mulher de Smith, Erin, contou como foram os últimos dias do seu marido e o que ela experienciou está a encontrar eco noutros testemunhos de membros da polícia e também das suas famílias: o que se passou quando aquela multidão violenta entrou no Capitólio não teve só as consequências imediatas e diretas que sabemos, cinco mortes e muita destruição, como está a traumatizar algumas das pessoas que viveram aqueles dias.

“Ele já não era o mesmo Jeff que saiu de casa no dia 6, eu tentei reconfortá-lo e disse-lhe que o amava e que se precisasse de qualquer coisa, fosse o que fosse, eu estaria aqui e que iríamos ultrapassar isto os dois. Fiz o melhor que sabia”, disse Erin Smith ao jornal norte-americano. Uma das varas onde um dos invasores levava uma bandeira acabou por entrar pela viseira de Smith e as dores no pescoço de que se queixava impediram-no de se movimentar. No dia 14, numa nova consulta com um médico, foi-lhe dito que deveria voltar ao trabalho.

A família começou por não querer falar do sofrimento mas depois do depoimento do chefe da polícia Robert J. Contee III, num comité do Congresso sobre o que tinha acontecido, Erin e a restante família de Smith repararam que havia mais pessoas a passar por provações psicológicas complicadas derivadas da experiência no Capitólio. Howard Liebengood, 51 anos, um dos agentes que responderam aos tumultos, também se suicidou - três dias depois da invasão. As famílias destes dois homens querem que as suas mortes sejam reconhecidas como “mortes em serviço”.

“Pensemos em qualquer tipo de terror de que já ouvimos falar nos meios de comunicação social. Quem tem de estar lá? A polícia. Alguém, algum humano tem de estar lá a ver tudo o que está a acontecer e eu não sei se os humanos foram feitos para entrar em contacto com tanto trauma tantas vezes quanto os polícias”, explicou à televisão WSAU, da cidade de Wausau, no Wisconsin, Brian Weiland, médico de uma clínica de psicologia que tem lidado com alguns casos problemáticos.

Casos como a morte violenta de George Floyd às mãos de um polícia de Minneapolis vieram também colocar os profissionais uma pressão redobrada, que alguns especialistas consideram que pode estar a afetar os agentes da autoridade. “Esta profissão é das mais escrutinadas pelo público, de forma verdadeiramente tremenda. Há um sentimento geral de grande falta de apoio, não só da sociedade mas das chefias”, disse ao “Washington Post” John Violanti, professor de saúde pública na Universidade de Buffalo, no estado de Nova Iorque. Uma opinião secundada por Brian Weiland, na mesma entrevista à WSAU: “O escrutínio público, a crítica constante, todos estão a observar de perto e quase à espera que os erros aconteçam. Tudo o que eles fazem é escrutinado ou por câmaras corporais ou telefone, o que, claro, é importante porque eles de facto têm um poder e uma responsabilidade muito grandes. Ao mesmo tempo, eles são humanos e as pessoas cometem erros e, quando esse tipo de coisas acontecem, é importante ter empatia dentro do razoável. Certamente não vamos ser empáticos com algo catastrófico como aconteceu com George Floyd”.

As gravações em áudio e vídeo que têm surgido nos últimos dias exibidas pelos democratas durante o julgamento do ex-Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, por alegada incitação à insurreição mostram bem o pânico da polícia. Quando a multidão tentava entrar, os polícias fizeram uma fileira para tentar impedir a sua progressão e os vídeos mostram vários agentes esmagados entre o escudo do colega de trás e o corpo do colega da frente a gritar “ajudem-nos”, “ajuda, por favor”, mas não havia mais ninguém das forças de segurança que os pudesse ajudar porque as forças de segurança que responderam ao ataque não foram suficientes para conter a multidão.

Noutros registos gravados ouve-se um polícia a gritar para o seu aparelho de rádio “muitos tiros disparados, ferimentos no Capitólio”. No primeiro dia do julgamento do impeachment de Trump, David Cicilline, representante de Rhode Island, disse que os invasores chamaram “nazis” aos polícias e “pouco patrióticos” por não os deixarem progredir até ao local onde os representantes da nação se tinham escondido.

“Sabemos que vários polícias que estiveram no Capitólio repetidamente ameaçaram fazer mal a eles próprios e que uma agente entregou mesmo a sua arma com medo do que pudesse fazer”, disse Cicilline. Robert J. Contee, o chefe da polícia que fez a exposição, organizou 30 sessões de grupo para os polícias que estiveram envolvidos no caos do dia 6.

A família do agente Liebengood não quis falar mas o advogado que está a lutar para que a sua morte seja classificada como tendo decorrido “ao serviço do país, Barry Pollack, disse ao “Washington Post” que a defesa é simples: “A família acredita que se ele não estivesse estado ao serviço do país naquele dia ainda estaria vivo”.