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Diretor de comunicação de Boris Johnson demite-se. A história de uma intriga que pode mudar a linha política em Downing Street

A saída de um dos principais defensores do ‘Brexit’ pode sinalizar que há uma ala moderada a ganhar força em Downing Street. Lidera-a a noiva do primeiro-ministro, Carrie Symonds, mas Boris Johnson também tem de pensar no mandato que recebeu dos britânicos há menos de um ano: uma autoestrada para sair da UE. Resta saber se isso pressupõe carta branca para a saída sem acordo. O prazo é de menos de 50 dias

Lee Cain, ex-diretor de comunicação de Boris Johnson
Leon Neal/Getty Images

Lee Cain, diretor de comunicação do primeiro-ministro britânico demitiu-se quarta-feira à noite do seu todo-poderoso cargo, depois de Boris Johnson ter quebrado a promessa de lhe oferecer outro ainda mais decisivo: o de chefe de gabinete. A saída de Cain, fiel apoiante do Brexit e das estratégias de comunicação pouco convencionais de Dominic Cummings, o principal conselheiro de Johnson, acontece por se ter tornado impossível esconder as fissuras políticas que tomaram conta do número 10 de Downing Street.

De um lado estão os que apoiam uma linha política com menos cedências aos adversários, no Brexitcomo no controlo da pandemia; do outro estão a noiva de Johnson, Carrie Symonds, e a nova cara do Governo para a imprensa, contratada por Johnson com o aval de Symonds: Allegra Stratton vai em breve tornar-se o rosto do Executivo em todas as televisões do país.

Estas divisões, dizem os que as viveram de perto aos jornais britânicos, eram óbvias há muito no núcleo duro do Governo que todos os dias trabalha em Downing Street. Paira agora o medo de que mais assessores e conselheiros políticos decidam demitir-se, entre eles o próprio Cummings, estrela da comunicação pró-Brexit’, amado e odiado em igual medida, no país e entre os membros do Partido Conservador.

Cain era seu braço-direito e tinha conquistado a confiança de Cummings quando ambos estiveram envolvidos na campanha eurocética vencedora do referendo de 2016. O afastamento de Cain, sem que o primeiro-ministro tenha tentado segurá-lo mesmo depois de confrontado por Cummings, dá um sinal às alas mais comprometidas com o Brexit: em Downing Street crescem as vozes da fação moderada.

Bancada parlamentar manda aviso

O deputado Charles Walker, vice-presidente do influente Comité 1922 (de parlamentares conservadores), disse ao programa Today, da BBC, que Johnson devia nomear um chefe de gabinete que conseguisse criar bom ambiente entre o Governo e os parlamentares. É uma clara repreensão ao ‘estilo Cummings’ de comunicação. “Acho que temos vindo a notar, já há algum tempo, descontentamento no n.º 10. Os deputados sentem-se excluídos do processo de tomada de decisões e isso não é segredo. Há aqui uma oportunidade real para esta vaga de chefe de gabinete ser preenchida por alguém que tenha boas ligações com o Partido Conservador e com a sua bancada na Câmara dos Comuns.”

Cummings deixou-se definir pelo desprezo que reserva às elites, que nunca tentou disfarçar. Essas elites incluem os deputados. O arquiteto da comunicação pró-Brexit, que inventou o slogan que muitos consideram ter feito a diferença (“Recuperar o controlo”) no referendo de 2016, não aceita compromissos, é conhecido por não ouvir especialistas, não mostrar reverência pelas figuras mais antigas do partido, entre outras coisas que terão levado os parlamentares a mover influências em Downing Street para que Cain não chegasse a chefe de gabinete, nomeadamente através de Symonds. Se isso acontecesse, a atitude sobranceira de Cummings poderia tornar-se ainda mais arraigada.

A divisão vai além das antipatias pessoais. Como analisa Stephen Bush na revista “New Statesman”, existe há muito um duelo ideológico entre os conservadores que aconselham o primeiro-ministro, revelado nestas intrigas muito públicas. “Esta demissão importa porque, nos últimos meses, tem-se espalhado por Downing Street uma discussão sobre que direção o Governo deve tomar: reforçar a abordagem que teve na eleição [de 2019], prometendo gastar mais no Serviço Nacional de Saúde, nas escolas, tudo com forte dose de guerra cultural, ou regressar à abordagem que Boris Johnson favoreceu quando foi presidente da Câmara de Londres, a do liberalismo social e económico?”, pergunta o analista, que aproxima a lente do caso concreto: “Deve Johnson governar como Dominic Cummings ou como David Cameron? Cain, veterano da campanha ‘Vote Leave’, conselheiro especial de Johnson durante a seu mandato nos Negócios Estrangeiros, foi a chave contra os que argumentavam que Johnson deveria voltar ao manual de 2008-2016”.

Enquanto a intriga vai envenenando o dia --dia do Governo, as folhas do calendário continuam a voar. O prazo para o fim das negociações do novo acordo comercial UE-Reino Unido está aí (a cimeira de 19 de novembro é vista como última oportunidade) e este tema comporta todo o peso do êxito ou falhanço de Johnson: numas eleições que venceu de forma incontornável (os conservadores têm maioria de 80 lugares no Parlamento), o povo deu-lhe um mandato para resolver o Brexit, mas incluirá isso uma saída que signifique o fim das ligações com o maior bloco comercial do mundo?

É esse o jogo que se faz entre os conselheiros do primeiro-ministro. Ou Downing Street está focada num acordo, mesmo que isso pressuponha mais cedências (como Johnson aceitou para continuar a negociar, em outubro do ano passado), ou o caminho passa a ser assumidamente o da rutura, o que, como também escreve Stephen Bush, serviria para “culpar a União Europeia pelas consequências económicas não apenas do ‘não-acordo’, mas de qualquer ressaca económica da crise do coronavírus”.

Para já, a dupla de mulheres decididas em Downing Street está a levar a melhor. Stratton, decorre da natureza do seu posto, será em breve conselheira próxima do primeiro-ministro. Será ela a modelar o que os britânicos ficam ou não a saber sobre as decisões e estratégias políticas que saem do n.º 10.