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Havia 24 mil extremistas de direita em 2018, cresceram para 32 mil - e quase metade admite recorrer à violência. O que se passa na Alemanha?

O crescimento da extrema-direita na Alemanha “é um dado adquirido”. Os movimentos radicais também estão a crescer - Merkel já disse que está preocupada. A questão é “grave” e “barulhenta” mas menos ampla do que parece, diz uma especialista ouvida pelo Expresso - o problema assenta em fenómenos como redes sociais, crise dos refugiados, AfD, covid-19, movimentos antissistema e cansaço do “centrão”. “Antes [os movimentos extremistas] estavam escondidos em alguns partidos, viviam numa espécie de pântano, entre medo e vergonha, um bocadinho clandestinos. (...) Hoje as reuniões são possíveis, nem que seja à volta de uma ideia atrás de um computador”. Quão preocupada deve a Alemanha estar? E quão preocupado deve estar o resto da Europa? “A extrema-direita reapareceu em força, mas desta vez soube assumir também uma face legal, mais burguesa”

Fachada do Parlamento alemão, onde a extrema-direita tem assento. “O crescimento da extrema-direita na Alemanha é um dado adquirido, sobretudo desde 2017, ano em que adquiriu grande expressão com a eleição de cerca de 100 deputados da AfD [Alternativa para a Alemanha]”
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Na manhã de 9 de outubro de 2019, quando se celebrava o Yom Kipur, um dos mais importantes feriados judeus, o ódio manifestou-se na rua. Dentro de uma sinagoga em Halle, na Saxónia-Anhalt, 52 fiéis pediam perdão e liam a Torá quando foram silenciados pelo barulho de dois explosivos e pelo que daí fumegou. O homem que conduzia a oração percebeu em poucos segundos a geometria do ódio e encaminhou todos os que estavam ali para uma sala segura. Quem estava lá fora tinha um objetivo. Frustrado por não conseguir entrar na sinagoga, Stephan Balliet, de 28 anos, atirou então sobre as pessoas que estavam na rua, matando uma mulher e ferindo outros. A seguir, algumas ruas mais à frente, atirou explosivos para uma loja que vendia kebabs e disparou sobre o homem que lá estava dentro. Foi um dos piores ataques antissemitas na Alemanha depois de 1945.

Num discurso em que assinalava os 70 anos do Conselho Central dos Judeus na Alemanha, na passada terça-feira, Angela Merkel deixou claro: “Muitos judeus não se sentem seguros, não se sentem respeitados no nosso país. Isto é uma parte da realidade de hoje e causa-me grande preocupação”. Se há um contexto histórico que importa sempre mencionar, o Holocausto e as atrocidades sofridas pelos judeus durante o nazismo, há agora uma versão diferente durante a pandemia, uma espécie de atualização do preconceito. “A teoria mais difundida é que os judeus estão a usar o coronavírus como arma biológica para alcançar o domínio global. Nesse caso, fica claro como o antigo ódio antissemita se está a atualizar perante uma nova crise”, explica neste artigo Cathrine Thorleifsson, que conduz a investigação sobre a extrema-direita no C-REX, um centro de investigação para o extremismo da Universidade de Olso, na Noruega. Se Thorleifsson não especificou o caso alemão, Josef Schuster, o presidente do Conselho Central dos Judeus na Alemanha, foi mais concreto e garantiu que os judeus estão a ser responsabilizados pela propagação do vírus, numa situação que compara com o que se passou outrora, em tempos de peste.

O radicalismo está a crescer na Alemanha. A extrema-direita e os movimentos conectados com ela estão organizadamente a ganhar músculo, a sair da sombra. Só mais um exemplo disso foi a recente suspensão de 29 polícias por serem suspeitos de trocarem imagens de Hitler e propaganda nazi em grupos de chat. “O crescimento da extrema-direita na Alemanha é um dado adquirido, sobretudo desde 2017, ano em que adquiriu grande expressão parlamentar, com a eleição de cerca de 100 deputados da AfD [Alternativa para a Alemanha] para o Parlamento Federal”, explica ao Expresso Francisco Assunção, ex-correspondente da agência Lusa que vive em Berlim há 34 anos. “Até então, os partidos da extrema-direita só tinham conseguido anichar-se em alguns parlamentos regionais, sobretudo no leste. A dimensão desse crescimento é assinalável portanto, mas não abala, atualmente, a democracia alemã, já que os partidos tradicionais continuam a ter mais de 70% do eleitorado, e a AfD está cotada na casa dos 15%, no máximo.”

Para Mónica Dias, professora do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica, a questão, que é “grave” e “barulhenta” mas menos ampla do que parece, assenta em alguns fenómenos: redes sociais, crise dos refugiados, AfD, covid-19 e movimentos antissistema e cansaço do “centrão”, a coligação CDU-SPD que governa o país há 15 anos. “Antes estavam escondidos em alguns partidos, viviam numa espécie de pântano, entre medo e vergonha, um bocadinho clandestinos. O sistema constitucional não permitia este pensamento de extrema-direita na Alemanha”, diz Mónica Dias. As redes sociais, aponta, mudaram as regras do jogo e polarizaram a sociedade e normalizaram alguns discursos e possibilidades. Hoje as reuniões são possíveis, nem que seja à volta de uma ideia atrás de um computador. Há partilha e “encorajamento mútuo”.

De acordo com o último relatório dos serviços secretos alemães, publicado em julho, foram identificados 32.080 extremistas de direita no país, em 2019, quando no ano anterior foram sinalizados 24.100. O relatório da Bundesamt für Verfassungsschutz diz ainda que 13 mil extremistas estão preparados para recorrer à violência, 300 mais do que em 2018. O ministro do Interior alemão não tem dúvidas: o extremismo de direita é a maior ameaça à segurança da Alemanha. Horst Seehofer disse ainda que, para além do extremismo da ala direita, o racismo e o antissemitismo também estão a ganhar espaço. “Estas são as grandes ameaças para a segurança na Alemanha.”

Essa violência e a agenda radical foram sendo traduzidas no escalar dos crimes de ódio. O Ministério do Interior alemão revelou que, em comparação com o ano anterior, os crimes antissemitas aumentaram 13% em 2019. As autoridades registaram 2.032 crimes relacionados ao ódio contra os judeus, contava em maio este artigo da "Folha de São Paulo". Mais de 90% foram da autoria de grupos de extrema-direita.

De acordo com um estudo do C-REX, da Universidade de Olso, a Alemanha é o país da Europa Ocidental que registou mais violência associada à extrema-direita desde 1990, ações que culminaram no assassinato de 121 pessoas - as autoridades germânicas colocam essa cifra nos 109. Hoje em dia, diz o mesmo estudo, os alvos dos extremistas de direita são minorias e migrantes. Nesta fase turbulenta, no entanto, nem os políticos estão a salvo: Walter Lübcke, autarca de Kassel (CDU), no estado de Hessen, foi assassinado, em 2019, com um tiro na cabeça por defender políticas pró-refugiados