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Trabalhadores não qualificados deixam de ter via legal para migrar para o Reino Unido. Conheça o novo “sistema por pontos”

Com a promessa de redução da imigração se fez uma campanha. E com ela Boris Johnson ganhou um enorme mandato em dezembro de 2019. A imigração é dos temas que mais preocupam os britânicos e o novo sistema que visa reduzir o número de pessoas que escolhem viver e trabalhar no Reino Unido foi revelado esta quarta-feira pela ministra do Interior, Priti Patel. Curiosamente, a família de Patel não teria entrado no país se estas regras vigorassem nos anos 60, quando os seus pais trocaram o Uganda pelo Reino Unido

Portugal é a sexta maior fonte de imigração para o Reino Unido
Toby Melville/ REUTERS

É a maior revolução no sistema de aceitação de novos emigrantes em mais de meio século. Respondendo a um dos temas mais quentes do debate à volta do Brexit, o Governo britânico apresentou esta quarta-feira o novo modelo de “imigração por pontos”, que veda a entrada aos imigrantes não-qualificados por exemplo, empregados de mesa ou pessoas que façam limpezas e estabelece critérios para todos os outros.

Não haverá limite de entrada para pessoas que apresentem níveis muito altos de competências em áreas como a investigação científica e há concessões para quem tiver profissões necessárias em determinado setor de atividade económica, mas o processo de pedido de visto torna-se bastante mais complexo para um europeu. É a materialização em lei de uma ideia que inúmeros apoiantes do Brexit perfilham: o sistema tem de ser mais justo e não oferecer privilégios aos europeus pelo facto de o serem, quando pessoas qualificadas da Argentina ou do Gana têm de enfrentar rigorosos critérios de seleção.

Em resumo, quais são as novas regras?

Para que um estrangeiro possa candidatar-se a um visto para trabalhar no Reino Unido, precisará de garantir 70 pontos, divididos em quatro parâmetros: oferta de emprego (20 pontos), esse emprego ser qualificado (20 pontos), domínio da língua inglesa (10 pontos) e na maioria dos casos usufruir de um salário anual de pelo menos £25.600 (cerca de 30,200 euros) (20 pontos). Todas estas regras já existem para candidatos de países de fora da UE e passam, agora, a afetar todos os proponentes.

E em detalhe?

O que acontece aos trabalhadores sem qualificações específicas?

Em primeiro lugar sublinhe-se que esta definição é complexa. Saber consertar canos não estará na lista de qualificações específicas do Governo britânico, mas um canalizador com anos de experiência é qualificado. A ideia deste novo sistema é que essas profissões passem a ser desempenhadas por britânicos, apesar de inúmeras organizações representantes dos vários setores de atividade terem dito que as novas regras vão prejudicar a economia e que não é possível requalificar toda a força laboral estagnada do Reino Unido em tempo útil. Mas já lá vamos.

Será possível continuar a imigrar para o Reino Unido apenas para servir à mesa? Difícil, para não dizer impossível. Não haverá opções de visto temporário ou geral para migrantes com baixa qualificação. O documento do Governo sobre as novas regras diz especificamente: As empresas do Reino Unido terão de adaptar-se e ajustar-se ao fim da livre circulação e não procuraremos recriar os resultados da dessa mesma livre circulação com este novo sistema de pontos”. E acrescenta: Como tal, é importante que os empregadores se afastem da dependência do sistema de imigração do Reino Unido como alternativa ao investimento na retenção de funcionários, produtividade e maior investimento em tecnologia e automação.

Importa falar do caso português. Apesar de a nossa imigração qualificada ter dado um salto muito grande, um estudo o Observatório da Emigração de 2014 mostra que a grande maioria da mão-de-obra portuguesa que emigra não é altamente qualificada. Só uma percentagem reduzida de emigrantes tem cargos de chefia ou se dedica a áreas científicas e intelectuais, apesar de a emigração qualificada ter aumentado 87% numa década.

No que ao Reino Unido diz respeito, mais de um quarto (28%) dos emigrantes nacionais completaram o ensino básico ou secundário e um quinto (19%) eram licenciados. Quase tantos como os que não completaram qualquer grau de ensino (22%). Aapesar de no Reino Unido haver mais licenciados do que noutros países da Europa, quase um terço (29%) tem empregos não-qualificados. Mais de 10% são trabalhadores qualificados da indústria e da construção e 22% ocupam-se da área dos serviços pessoais e proteção ou operação de máquinas e linhas de montagem. Os especialistas de profissões intelectuais e científicas são apenas 10% do total de emigrantes e só 7% são quadros superiores ou dirigentes.

Estima-se que 70% da força de trabalho proveniente da UE não cumpra os requisitos de entrada estabelecidos para os trabalhadores qualificados.

O que acontece aos trabalhadores qualificados?

É o que está resumido no primeiro ponto, aqui explicado com mais detalhe:

Todos os candidatos cidadãos da UE e de fora da UE que desejem morar e trabalhar no Reino Unido precisarão de reunir 70 pontos para poderem solicitar um visto. Os pontos serão concedidos conforme cada proponente consiga demonstrar:

  • Ter uma oferta de emprego de uma empresa reconhecida oficialmente como empregador pelo Ministério do Interior (20 pontos);
  • Ter uma oferta de emprego que esteja no nível de habilidade exigido (20 pontos);
  • Falar inglês (10 pontos);
  • Uma promessa de salário de no mínimo 25.600 libras (cerca de 30.200 euros) por por ano (20 pontos).

Há pontos que podem ser concedidos para determinadas qualificações e se houver escassez de mão-de-obra numa atividade específica. Por exemplo, se um trabalhador tiver uma oferta de emprego com um salário abaixo do limite mínimo exigido mas não menos que 20.480 libras (24.500 euros) ainda poderá candidatar-se se essa oferta for para uma ocupação específica que apareça na lista de carência de empregos do Governo ou se forem doutorados. Isto pode significar que os assalariados mais baixos, como enfermeiros, ainda podem solicitar um visto, se a lista oficial incluir essa ocupação como profissão necessária.

E quanto aos trabalhadores altamente qualificados?

Deixa de existir limite para a sua entrada e podem instalar-se no Reino Unido sem contrato de trabalho, desde que a sua chegada seja do conhecimento de um “entidade competente” (universidades, consultoras, ONG, organismos do governo) que possa vir a precisar dos seus serviços altamente qualificados. Nesta categoria estarão incluídos profissionais de ciência, tecnologia, engenharia e matemática, entre outros.

Quando é que o novo sistema entra em vigor?

Deverá estar pronto para ser adotado a 1 de janeiro de 2021.

Como é que a indústria tem reagido?

O pensamento por trás da estratégia é que o modelo económico do Reino Unido tem de mudar e os empregadores não podem confiar numa espécie de fluxo ininterrupto de mão-de-obra barata como forma de escaparem à urgente atualização tecnológica das suas indústrias. Foi o que a ministra Priti Patel passou uma manhã a tentar explicar numa abrangente ronda de entrevistas. Numa delas, foi obrigada a admitir um pouco mais do que desejaria. Nick Ferrari, apresentador do programa da manhã da rádio LBC, perguntou a Patel se, com estas novas regras, os seus pais pais teriam conseguido estabelecer-se no Reino Unido vindos do Uganda nos anos 60. A ministra admitiu que provavelmente não teria sido possível.

Pouco afetada por essa contradição na sua história pessoal, Patel continuou a explicar que “há 8 milhões de pessoas entre os 16 e os 64 anos que são economicamente inativas e podem ter de desenvolver as competências necessárias para realizar trabalhos em setores onde passe a haver escassez como resultado das novas regras”. A indústria não ficou calada.

A Federação de Pequenas Empresas propôs que limite mínimo de salário fosse fixado em cerca de 20 mil libras (24 mil euros): O facto de haver espaço para que não sejam precisos vistos para algumas categorias de qualificações é positivo, mas essa possibilidade deve ser aberta a trabalhadores de nível médio e não restrito a profissionais altamente remunerados, afirmou, em comunicado, a organização.

A hotelaria será um dos setores mais expostos a qualquer impacto adverso das novas medidas. A Federação de Industriais de Alimentos e Bebidas, cujos membros dependem muito de trabalhadores da UE, já que há uma enorme falta de candiadtos britânicos a este tipo de empregos, consideram que o limite salarial é muito alto. “O Governo tem de ir mais longe”, disse um representante da associação ao diário “The Guardian”. Segundo as últimas contas desta federação, os europeus compõem um quarto da força de trabalho de 430 mil funcionários no fabrico, venda e distribuição de alimentos e bebidas.

Também os representantes do setor agropecuário lançaram alertas. O novo sistema prevê a possibilidade de que que os trabalhadores sazonais que fazem as colheitas no Reino Unido (muitos do leste da Europa) possam continuar a pedir vistos para esse fim, mas existem apenas 10.000 “lugares” disponíveis, muito abaixo do que o Sindicato Nacional dos Agricultores (NFU) pede para 2021: 70 mil. Minette Batters, chefe da NFU, disse, citado também pelo “The Guardian” que é irónico que o Executivo incentive as pessoas a comer mais frutas e legumes, ao mesmo tempo que “dificulta a produção de frutas e legumes”.