Internacional

O último debate antes das eleições foi uma destilaria em que Johnson e Corbyn fizeram tudo para purificar a mensagem

Simplificar, clarear, purificar, drenar, emagrecer. Falta menos de uma semana para as eleições gerais no Reino Unido e esta foi a última oportunidade para ambos os candidatos ao cargo de primeiro-ministro explicarem, num meio de massas como é a televisão, aquilo que realmente querem para o país. Tudo foi bem ensaiado e nenhum deles saiu demasiado do risco. Mas duas coisas permanecem uma incógnita: porque é que Johnson continua a falar como se tivesse um acordo comercial assinado com a UE quando isso ainda está para ser discutido?; por que razão Corbyn não consegue pronunciar-se de uma vez contra ou a favor do projeto europeu?

Hollie Adams/Getty

Boris Johnson levava a lição dos seus assessores bem estudada: sempre que for possível reverter o tema em discussão para o Brexit e para a paralisia parlamentar que impediu a sua concretização durante tanto tempo, então esse é o caminho. E o primeiro-ministro não foi rebelde esta noite. Até no capítulo sobre a xenofobia e a linguagem pouco edificante que alastra pela retórica política britânica neste momento, Johnson foi capaz de “enxertar” o Brexit: “Tenho de vos dizer com sinceridade que este momento difícil que estamos a passar na política britânica também tem que ver com a divisão causada por ainda não termos resolvido o Brexit”. O problema do antissemitismo no ‘Labour’ ou da islamofobia no seio dos conservadores não tem necessariamente que ver com o referendo de 2016, até porque estas realidades são muito mais antigas, mas as ofensas, as ameaças, os insultos que muitos deputados, e especialmente deputadas, têm recebido nos últimos três anos já têm uma ligação mais direta com o Brexit: a maioria dos comentários maliciosos é dirigida a deputados que se opõem à saída do Reino Unido da União Europeia.

Dito isto, nos últimos dias surgiram fotografias e relatos, principalmente nas redes sociais, de comportamentos bastante condenáveis por parte de ativistas da ala mais extrema do ‘Labour’ que enviaram ratos mortos e em decomposição para Ian Duncan-Smith, deputado a lutar pela reeleição em Chingford e Woodford Green e apoiante do Brexit. Não há extremismos certos. Talvez o momento mais poderoso do debate tenha sido desencadeado por esta discussão, quando Corbyn condenou o racismo em termos gerais e Johnson mudou o tópico de volta ao “falhanço de liderança” de que já tinha acusado Corbyn por não se conseguir definir em relação à UE - desta vez focando-se no antissemitismo no ‘Labour' para o acusar do mesmo: “Eu acho que o senhor Corbyn é muito bem intencionado mas falha ao lidar com essa questão em particular. A sua falta de vontade em tomar uma posição, em defender o povo judeu (...), é, a meu ver, um fracasso de liderança. Não se pode ser neutro em questões como esta, tanto quanto, na minha opinião, não se pode querer liderar este país e ser neutro na questão do Brexit”. E aqui Corbyn reagiu: “Uma falha de liderança ocorre quando alguém usa comentários racistas para descrever pessoas de países diferentes ou que fazem parte da nossa própria sociedade. Eu nunca farei isso, nunca fiz isso e o meu partido nunca fará isso”. E ficou mais ou menos arrumada a questão.

Em todos os outros temas - saúde, educação, economia, habitação -, Johnson remeteu a resolução de todos os problemas à relação consequencial que se pode traduzir no seguinte pensamento: se conseguirmos concluir o ‘Brexit’, vamos poder seguir com a nossa agenda para o país porque esta incerteza está a impedir o investimento e o desenvolvimento. O problema é que com ou sem Brexit os britânicos continuam a ter um SNS superlotado, turmas gigantescas nas áreas de maior densidade populacional e habitações caríssimas, mesmo mais a norte. A empresa de sondagens YouGov tratou de perguntar a vários telespectadores qual dos dois candidatos esteve melhor em todas estas áreas. Por exemplo, à pergunta “quem é que se mostrou mais confiável?”, 54% responderam Jeremy Corbyn e 38% Boris Johnson; os restantes não sabem. À questão “quem parece ter mais contacto com as pessoas comuns?”, 57% responderam Jeremy Corbyn, como seria de esperar - com apenas 30% para Boris Johnson. Na questão do Brexit, quem vence é o líder dos conservadores: 62% consideram que Johnson esteve melhor na secção do debate sobre o ‘Brexit’. Mais do dobro do que os que dão o ponto a Corbyn (29%). O Serviço Nacional de Saúde, segundo esta sondagem, fica a salvo nas mãos de Corbyn, com 55% a dizer que confiam mais no líder dos trabalhistas nesta área do que em Johnson (33%).

Estes números não acrescentam muita informação ao que já se convencionou pensar que os britânicos pensam: Johnson é mais “ministeriável” e “mais sério”, Corbyn quer mais serviços sob a batuta do Estado e taxar mais quem mais recebe. Nenhum dos dois cometeu erros graves e também nenhuma nova promessa foi feita; o debate serviu como uma espécie de destilaria na qual cada um dos líderes tentou apurar ao máximo as suas promessas e mensagem política. O primeiro aplauso da noite não veio com boas notícias para Corbyn, cuja memória dos tempos em que apoiava o Exército Revolucionário da Irlanda (IRA) foi penosamente trazida para 2019 por Johnson para provar que Corbyn não está preocupado com a união do reino e por isso não se importa de oferecer um segundo referendo aos escoceses. Corbyn podia ter dito que é precisamente o Brexit que está a impulsionar o fulgor independentista a norte mas não disse porque isso seria, de alguma forma, admitir que defende o ‘remain’, coisa que ele não fez até agora e também não é expectável que venha a fazer até ao final da campanha - não vá com isso perder os votos dos socialistas que consideram a UE um bloco de neoliberais sem perdão. A questão do IRA acabou por abafar aquela que era a maior carta de Corbyn neste debate: um documento a que o ‘Labour’ teve acesso esta sexta-feira e que mostra que, contrariamente ao que Boris Johnson disse aos britânicos, é muito provável que exista de facto uma barreira alfandegária na Irlanda do Norte e um aumento de preços quase certo nos produtos de consumo diário na parte britânica da ilha da Irlanda.

Os piores momentos de Johnson estão mais concentrados: quase todos aconteceram durante o tópico da relação futura com a UE e a certeza que Johnson quer fazer passar de que existe um acordo comercial acordado com a UE - o que é mentira. Existe um acordo de princípio que estabelece os termos de saída, os deveres absolutos de ambas as partes (por exemplo, o Reino Unido tem de contribuir para o Orçamento da UE durante o período de transição e até ao momento em que se retire totalmente do mercado único) mas não está escrito, por exemplo, que não haverá tarifas sobre qualquer produto britânico exportado para os restantes países do bloco. Neste momento ficou claro que Johnson só tem uma arma retórica que é a repetição incessante da frase “temos um acordo maravilhoso que está pronto a ir ao forno”. Nick Robinson, o jornalista da BBC que conduziu o debate, chegou mesmo a dizer-lhe, algo irritado: “O senhor não tem um acordo comercial”. Mas também teve de levantar a voz com Corbyn quando o líder dos trabalhistas quis negar a avaliação negativa que o Instituto para os Estudos Fiscais fez do manifesto do ‘Labour’ (impossível de financiar sem grande subida de impostos, em resumo): “Eles escreveram que o seu manifesto não é realista, senhor Corbyn”, respondeu Robinson.

Johnson aproveitou aqui para marcar uma das suas posições potencialmente mais atrativas junto do seu eleitorado, dizendo: “Se vamos melhorar a nossa economia, então não podemos enterrar as nossas empresas e o nosso comércio sob uma pilha de impostos mais altos”. “Eles escreveram que o seu manifesto também não é credível, senhor Johnson”, disse Robinson. Aí foi a vez de Corbyn puxar os seus galardões de homem preocupado com os mais desprotegidos: “Os tories só ajudam quem está no topo e são as nossas localidades que pagam com isso - é preciso voltar a equilibrar a nossa sociedade. O ‘Labour’ vai elevar os impostos sobre as empresas para 26%, mais baixo do quem em 2010 [28%] e mais baixo do que hoje é praticado em França e nos Estados Unidos.”

Se o debate tivesse continuado por aqui, sem perguntas, talvez se tivesse tornado verdadeiramente elucidativo, já que Johnson e Corbyn acabaram a discutir que modelo, socialismo ou comunismo, mais tinha ajudado as pessoas a sair da pobreza, no geral, em todo o mundo. Corbyn respondeu: “Socialismo integrado numa sociedade democrática, como se vê na Escandinávia”. Johnson elogiou o capitalismo “capaz de criar riqueza que depois usamos para melhorar os nossos serviços públicos”.